Mapa do Património Municipal

Mapa de Património Religioso

O «Casulo» – Capitulo III – Terceira vida (1982 – 2008)

30 Setembro 2008

casulo_alcado_nascenteNa sua terceira“vida”, o “Casulo” torna-se hospedeiro de uma Associação – o Centro Cultural de Figueiró dos Vinhos – que “acolhe” generosamente e à qual oferece todo o seu poder simbólico. Acreditou que podia reerguer-se pouco a pouco, sair definitivamente do anonimato patrimonial e voltar ao convíio das gentes Figueiroenses. Voltava a sonhar com uma nova Primavera existencial. Contudo, esta renascida Primavera Cultural, dura somente cerca de uma década e o “Casulo” voltaria a enfrentar um longo e penoso Inverno cultural e patrimonial.
centro_cultural_de_figueiro_dos_vinhosEm 27 de Fevereiro de 1982, um grupo de Figueiroenses reúne-se no Salão Nobre da Câmara Municipal “com o fim de dar vida a um velho sonho da população do concelho”: fundar um Centro Cultural na Vila de Figueiró dos Vinhos. A iniciativa congrega pessoas de todos os quadrantes. A uni-las, um grande e voluntarioso entusiasmo. Nesse mesmo dia, elegem os primeiros corpos sociais da Associação, com o orgulho e o mérito de serem os fundadores de uma causa comum: Marta Forte G.Branco, João Rodrigues, Luis Filipe Lopes, Carlos Medeiros, Fernando Lopes, António Lacerda, Fernando Santos Conceição, Manuel Alves da Piedade, Padre Manuel Ventura, Fernando G. Branco e Fernando Pires, são alguns dos nomes que estiveram na vanguarda desta iniciativa. Contudo, faltava-lhes uma sede fixa e condigna, que não obrigasse a Associação a uma vida de nomadismo, para realizarem as suas reuniões e que iam sendo feitas, ora no Salão Nobre dos Paços do Concelho, ora na sala contígua do Cartório Notarial. Na fase final, as suas reuniões tinham lugar numa sala cedida pelos Bombeiros Voluntários de Figueiró dos Vinhos. À distancia, namoravam o “Casulo”, e para o qual ambicionavam transferir a sua sede, num “noivado” que já se iniciara, discretamente, pelo menos desde Abril desse ano. Simultaneamente, a Direcção desta Associação, tomava tambem conhecimento de um projecto elaborado pelo Gabinete de Apoio Técnico e que objectivava adaptar o “Casulo” a “Centro Cultural”. Desta forma, a Edilidade Figueiroense estava tambem apostada em não repetir o erro de 1937 e, conjuntamente com o Centro Cultural, traçava uma estratégia, que incluía contactos com o proprietário do “Casulo”, a fim de adquirirem o imóvel. O projecto de recuperação-adaptação para esse edificio, para além de coincidir com os desejos do Centro Cultural, estava tambem em coerência com a classificação que o Municipio conseguira para o “Casulo”, de Imóvel de Interesse Municipal, pelo Dec. 28/82 de 26 de Fevereiro. Ajudava tambem o facto, da primeira direcção do Centro Cultural, ser constituída por um grupo de pessoas com grande prestigio nos meios Figueiroenses, facto este que terá pesado na anuência do proprietário em vender a esta Associação o imóvel e, sobretudo, porque objectivava albergar uma Associação Cultural, num espaço plenamente contextualizado para esse fim. Assim, em 29 de Junho de 1984, e pela quantia de oito milhões de escudos, o “Casulo” deixava de ser propriedade privada e passava a ser sede de uma Associação de Utilidade Pública. Quase meio século depois, o “Casulo” passava por uma nova transacção. Porém, teria de aguardar a rescisão do contrato de arrendamento com a sua última inquilina, para poder cumprir em pleno a sua nova missão, dentro do seu espaço simbólico.
A mudança do Centro Cultural de Figueiró dos Vinhos da sua antiga sede, isto é, de uma sala cedida pelos Bombeiros Voluntários, para a “Casa Malhoa”, foi feita num enquadramento algo deprimente, e que nos é revelado pela transcrição da acta da reunião da Direcção, datada de 5 de Fevereiro de 1987: “Às actividades que acabamos de expôr (e que foram muitas), devem juntar-se as seguintes acções desenvolvidas no âmbito da instalação deste Centro na sua nova sede – A Casa Malhoa.(…)Tratamento e limpeza do jardim e horta anexos à casa, os quais nos foram entregues em condições altamente degradadas e cujos trabalhos foram dispendiosos e demorados. Pequenos arranjos na instalação eléctrica, sem carácter definitivo e com o objectivo de instalar as exposições atrás referidas. Limpeza das dependências interiores com o mesmo fim. Mobilamento da Sala de reuniões, já que a casa nos foi entregue sem qualquer mobiliário à excepção da mesa e cadeiras da sala de estar, a qual possui revestimento mural a pergamóide gravado com entablamento no tecto já desprovido de quadros a óleo, mas possuindo um candeeiro do principio do século. Mobilamento da Sala da Direcção(…)”.
Em 23 de Fevereiro de 1987, na sua sede do “Casulo”, tomava posse uma renovada Direcção do Centro Cultural, que viria a ampliar e a reforçar esta nova Primavera existencial do edificio. Era composta por uma equipa jovem, que profissionalmente trabalhava no Gabinete Técnico da Câmara Municipal de Figueiró dos Vinhos: Rui Manuel Almeida e Silva, Eduardo Kol de Carvalho (arquitecto que viera de Lisboa), José Manuel Fidalgo, Maria Adelaide Leitão e Manuela Santos Alves. Dotados com formação e sensibilização patrimonial, que iam adquirindo com os trabalhos de execução do Plano de Pormenor de Salvaguarda do Centro Histórico da Vila de Figueiró dos Vinhos, e ao qual aplicavam, inclusivamente, a filosofia das Cartas Patrimoniais Intenacionais, elegeram como prioridade a reabilitação completa e cirúrgica do “Casulo” de Malhoa. O edificio seria a base donde irradiaria um ambicioso programa cultural, e que o colocaria como ponto de encontro entre a população e a Arte, a História, o Património e a Etnografia do concelho, abrindo diáriamente as suas portas e promovendo múltiplas iniciativas. Os trabalhos de recuperação foram emblemáticos e exemplares, realizados com tecnologias e materiais tradicionais, aplicando técnicas “antigas” e repondo a sua anterior tipologia. Tudo foi recuperado, desde a cave ao sotão: paredes exteriores e interiores, telhado, portas e janelas, madeiramentos, estuques, frisos, pinturas e caiações, ferragens, lago e jardim, espaços interiores, etc. Só não se procedeu às reposições arquitectónicas originais. O “Casulo” renascia!
Na verdade, entre Fevereiro de 1987 e Junho de 1993, o “Casulo” voltou a erradiar vida, cor e luz: inúmeras exposições de temática diversificada, visitas culturais guiadas, edição de um boletim cultural “O Casulo” (com 13 edições), levantamento do património concelhio, instalação de uma biblioteca com cerca de mil volumes para consulta e estudo dos sócios, apresentação e feiras de livros, etc. Estabeleceram-se contactos com entidades nacionais e estrangeiras (Secretaria de Estado da Cultura, Fundação Gulbenkian, Instituto da Juventude, Região Turismo do Centro; Brasil, Itália e Japão), promoveram-se actividades lúdicas e recreativas, realizaram-se as Festas Populares (S.Martinho, Sto. António, S. João), construiu-se um coreto e anfiteatro nos terrenos adjacentes do “Casulo”, e que inclusivamente, chegou a ser visitado pelo então Primeiro Ministro, Anibal Cavaco Silva. Promoveram-se Programas diversos: Ocupação dos Tempos Livres; Apoio ao Associativismo e Apoio aos Trabalhadores Desempregados. Um grupo de Professores de Artes Plásticas, de Lisboa e do Porto, ofereceu um conjunto de vinte paineis e que vieram a colmatar o vazio existente na sala de visitas do “Casulo”. Aquela casa voltava a ser frequentada, novamente, por um espirito “inquieto”, sonhador e profícuo. No seu apogeu, o Centro Cultural contava com cerca de 300 sócios.casulo_de_malhoa_com_claraboia_do_atelier
O grupo que esteve na base deste sucesso associativo, e que tanto se repercutiu no “Casulo, entre Fevereiro de 1987 e Junho de 1993, decide passar o “testemunho” a um novo grupo de jovens cheios de entusiasmo e convicção. Estes, herdavam uma herança demasiado pesada mas cuja essência aceitaram prosseguir e sustentar. Assim, em 11 de Junho de 1993, é eleita uma nova Direcção do Centro Cultural, e que seria a última Direcção eleita daquela Associação, e a avaliar pelo Livro de Actas da Assembleia Geral.
Na primeira fase da sua gestão directiva, a Associação ainda conseguiu levar a efeito algumas iniciativas importantes, mantendo o brilho e o fulgor do “Casulo”. Todavia, não possuo elementos concretos e que me permitam avaliar, documentalmente, o desempenho desta última Direcção, mas tão somente uma Acta (cheia de entusiasmo) lavrada no Livro de Actas da Assembleia Geral, de 29 de Dezembro de 1993, e cuja leitura nada fazia prever ou adivinhar o que se passaria lá mais para a frente no tempo, e na vida do “Casulo”, e cuja história teria um final triste e desolador. Assim, passados alguns anos, e surpreendentemente, as portas do “Casulo” voltariam a fechar, reflexo de uma óbvia desmotivação por parte do grupo associativo, que se percutia na ausência de programa orientador e de acções concretas por parte do Centro Cultural. Gradualmente, ia tomando também forma o espectro visível de uma nova degradação fíisica do “Casulo”, levando a Direcção do Centro Cultural, a candidatar-se aos fundos do PIDDAC (Programa de Investimento e Despesas de Desenvolvimento da Administração Central) constituído por valores do Orçamento do Estado, na alçada do então Ministério do Planeamento, que possibilitaria intervir na recuperação física do edifício, e cuja candidatura o Centro Cultural apresentou em 1998, tendo sido aprovada pela Direcção Geral das Autarquias Locais. Entretanto, e mais recentemente, a Direcção Geral das Autarquias Locais solicitava à Associação a devolução do adiantamento que esta recebera, acrescidos dos respectivos juros de mora, por não ter havido (até essa data) prova da aplicação da verba. Desta forma, e dado que a verba não foi devolvida, o Estado, inevitavelmente, executou a penhora do “Casulo” e dos seus terrenos anexos, para pagamento da divida. Com a execução da penhora pelo Ministério das Finanças, em Maio último, a Câmara Municipal usou do direito preferencial, que lhe assistia para o resgate do imóvel, e “salva” o “Casulo” do risco que este incorria em se transformar, novamente, numa propriedade legitimadora de poderes pessoais. O resgate deste património custou aos cofres da Câmara 160 mil Euros.
Neste momento, encontra-se em curso um plano cultural denominado “Rota de Malhoa”, e que inclui os municipios de Figueiró dos Vinhos, Caldas da Rainha, Alpiarça (Casa dos Patudos) e Lisboa, que tem o seu ponto central e unificador nas potencialidades naturalistas da região e no seu património integrado. Focaliza-o e contextualiza-o as potencialidades culturais, disponibilizadas pelo espólio fisico, material e memorial de José Vital Branco Malhoa. Que sítios e locais lhe aguçaram a inspiração, que gentes, usos, costumes e tradições subsidiaram a sua alma criadora e que vestígios testemunhais ainda é possível detectar para melhor compreendermos a extensa obra que nos deixou.
O Município prepara-se, igualmente, para fundar um Museu de Arte Naturalista, que funcionará como “Escola”de divulgação das artes e que, principalmente, acolherá e despoletará paixões para as questões do património concelhio, que urge recuperar, inventariar, classificar, monografar, mostrar e divulgar, objectivando concentrar “ todo o património histórico que está disperso por vários pontos do concelho”, dando-o a conhecer a todos.
É necessário, devolver ao “Casulo”, e de uma vez por todas, a sua dignidade e o fim para o qual foi criado, tentando reencontrar nele o quotidiano do pintor, as tradições materiais, imateriais e memoriais da casa onde viveu, e onde tambem se tornou imortal.
O futuro Museu Municipal (e cujo ivestimento rondará os 900 mil Euros), será implantado nos terrenos da horta pertencentes ao “Casulo”, possibilitando uma dinâmica umbilical ao espaço memorial dessa casa. As essências do “Casulo” e do Museu Municipal alimentar-se-ão recíprocamente, num axioma mediático comum, articulado em redor dos mesmos valores fundamentais: manter, conservar e reabilitar constantemente o património, como actos de cidadania, em reconhecimento de uma memória colectiva, que diz respeito a todos, e longe de elitismos redutores.

A lição das Vicentinas de Figueiró dos Vinhos

30 Setembro 2008

vicentinas_foto1As Conferências Vicentinas são hoje consideradas de Solidariedade Social. Tiveram o seu início nos bairros pobres de Paris, França, em 1833, fruto da acção de meia dúzia de jovens, liderados por Frederico Ozanan, com apenas vinte anos de idade, e cuja dedicação à causa se inspirava na obra e na missão caritativa de S. Vicente de Paulo, isto é, sob o influxo da justiça e da caridade, objectivando aliviar os sofrimentos aos marginalizados, mediante o trabalho coordenado de seus membros. Devido ao seu grande sucesso as Conferências rapidamente difundiram-se por toda a Europa e em 1859 já estavam vastamente implantadas em Portugal. Este movimento tem a constante preocupação em se renovar constantemente, a fim de se adaptar à dinâmica da sociedade e do mundo.

O núcleo feminino de Figueiró dos Vinhos, foi instalado em 17 de Março de 1965, precisamente há 43 anos. Tiveram como Presidentes senhoras de elevado prestigio social, tais como, Maria Alice Faria Tambá, Margarida Borges Albuquerque Calheiros Ferreira, Maria Licínia Campos Costa de Abreu, Maria do Patrocínio Tadeu, Maria Albertina Barata Simões Arinto, Prof. Manuela Pereira, sendo presididas actualmente pela Professora Celeste Dias. Prestam auxílio domiciliário, na doença, a toxicodependentes, etc, tendo tido no ano de 2007, cerca de seis mil Euros em despesas, que se traduziram na ajuda a 320 pessoas carenciadas

Contudo, o presente artigo não tem como objectivo historiar o núcleo das Vicentinas de Figueiró dos Vinhos, embora fosse importante fazê-lo, mas sim para realçar o exemplo que esta Associação deu aos seus conterrâneos no dia 14 de Setembro último, presenteando-os com um espectáculo na Casa da Cultura, que encheu completamente, para ouvir o que as Senhoras da Conferência de S. Vicente Paulo tinham para nos mostrar e dizer. Confesso que fui levado pela curiosidade, para ver como “tudo aquilo ia sair”, mais a mais, num espectáculo elaborado por um grupo sem experiência de palco e que pela primeira vez se apresentava ao público, sujeitando-se ao seu julgamento artístico. Pois bem…saí de lá “de boca aberta” (como se diz na gíria popular) e tambem com a lição bem aprendida.

E quando falo em lição aprendida, não me refiro somente à maneira magistral como contaram a epopeia da sua Associação e do Santo que as patrocina. A lição que trouxe nesse dia, de dentro da Casa da Cultura, é mais profícua e profunda. Para além de mostrarem ambição artística, as Vicentinas foram um estimulo a novas formas de contar histórias, propondo ao público o acolhimento de valores imutáveis e fundamentais e que souberam transmitir de forma renovada, num acto de verdadeira cultura, e sem elitismos culturais, muitas vezes refreadores, e que afastam a comunidade dessa relação sadia, e que se quer assim, simples e pura. Mostraram tambem uma nova fórmula para encorajar a criatividade, uma vez que provaram, que todos podem e devem participar na construção de uma certa identidade cultural, aberta a todos, e que, neste caso, de forma original, deu expressão à vida quotidiana da sua comunidade associativa. Assim, venceram em cerca de 2 horas de representação, um grande desafio, que foi provar aos actores políticos e culturais do nosso Concelho, que são parceiras fundamentais no processo de intervenção local e comunitário. Bem organizadas, coesas, com pleno espírito de entreajuda, este grupo de senhoras foi capaz de pegar num espaço e numa ideia, e que entusiasticamente souberam dinamizar. Sem serem detentoras de fórmulas especiais ou supra naturais, as Vicentinas conseguiram o Teatro, a Música, a Cenografia, os slides e a imagética, numa fórmula em que se assumiram como artistas interventoras e criadoras, resultante da sua motivação, e em coerência com a filosofia que defendem na sua Associação. Estão todas de parabéns, tanto as Senhoras que estiveram em palco, como tambem aquelas que nos bastidores preparam o espectáculo do dia 14 de Setembro de 2008.

A segunda lição que aprendi, é que, na vida comunitária, o mais importante são as pessoas, por mais obras que se ergam em cimento, alcatrão e betão. Em Figueiró dos Vinhos, o potencial humano existe, em todos os escalões e faixas etárias, mas está “imerso”, por valores que muitas vezes esquecem a valência humana, individual e colectiva. Mais importante que as engenharias e as arquitecturas, importa tambem erigir ideias, mudar mentalidades, espevitar dinamismos que frutifiquem, soltar a massa critica (e criativa) da comunidade.

O espectáculo que ofereceram, teve tal aceitação e impacto, que o irão repetir, a pedido de muita gente, em 23 de Novembro próximo.

E é assim, que este Grupo de 29 Senhoras Vicentinas, mantém uma obra voluntariosa há quase meio século em Figueiró dos Vinhos, e isso, só por si, é mais que suficiente para merecerem uma sede, ou um espaço dignificador, não para elas, mas para aqueles a quem servem todos os dias, e que esteja à altura da missão que abraçaram: servir o próximo.

O «Casulo» – Capitulo II – Segunda vida (1933 – 1982)

15 Setembro 2008

Se a primeira “vida” do “Casulo” representou o idílio dourado deste edificio, já a sua segunda “vida” representaria o inicio de uma viúvez patrimonial, desgarrada do seu pulsar simbólico, e aproveitada apenas como imagem de postal ilustrado, numa vaidade turistico-cultural bacoca e desprovida de sentido.
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Em 10 de Setembro de 1933, um mês e meio antes de falecer, José Malhoa janta na Quinta de Cima, em Chão de Couce, na casa da familia do seu grande amigo Alberto Rego, no dia em que foi inaugurado o retábulo de “Nª Srª da Consolação”. Foi o seu último grande “serão”entre amigos. No dia seguinte, já no “Casulo”, escreve uma carta endereçada à “Exma Srª D. Elvira”, e que seria a sua última missiva cheia do seu mais fino humor, onde se reflecte a alma de que era feito, e que eu não resisto a transcrever:
“O último quarto de hora do jantar delicioso, que V.Excª e o Exmo Sr. Dr. Alberto Rego me ofereceram, foi um tormento para mim! Calcule V. Excª que, quando espetava com o garfo aquela deliciosa e loirinha pele de leitão, a mesma escapou-se como uma enguia de dentro do garfo e desapareceu no meu regaço! Muito à sucapa, começo a tactear com a mão no guardanapo, e…nada! Bem (disse para comigo) está no colete ou nas calças, e lá me fica estragado o meu mais novo arranjinho!…Continuo com as minhas investigações manuais, e…nada! E então gritei cá para dentro: ai Jesus! que a pele caiu no tapete, e é nódoa certa!!…Resolvi, depois de muito matutar, aproveitar quando, terminado o jantar,(…) baixar-me, apanhar a maldita pele, e colocá-la debaixo da cadeira de V. Excª, e assim era V. Excª quem pagava as favas. Mas qual!…De repente, levantam-se todos a gritarem-me «Olha as iluminações, venha para a janela da torre, que aí vem a música e a marcha!». Corri tambem, e lá ficou a pele e a nódoa a alastrar…a alastrar! Faço ideia que a criada hoje, ao fazer a limpeza, pôs as mãos na cabeça ao ver a nódoa terrível, e o menos que terá dito é «que grande porcalhão que é o tal “pinta mônos”»! Perdôe V. Exª ao desastrado muito grato, José Malhoa.”casulo_anos_60_jose_malhoa
O Mestre, em testamento, nomeara como herdeira do “Casulo” a sua afilhada, Julieta de Almeida Pinto e Abreu, filha do seu grande amigo, o Pintor Henrique Pinto. Contudo, Julieta morre inesperadamente uns meses antes do Pintor, em 11 de Fevereiro de 1933, causando-lhe um enorme e profundo desgosto. Embora tivesse tido tempo para o fazer, Malhoa não se preocupa em alterar o seu testamento e procura continuar a sua vida da melhor forma possivel e descontraídamente e tal como o prova a carta acima transcrita. Desta forma, opta por “deixar” à Sociedade Nacional de Belas Artes o remanescente do seu património. A Sociedade, após a morte de Malhoa, toma a posse legal do “Casulo” e decide vendê-lo em hasta pública, facto que veio a consumar-se em Março de 1937.
Joaquim Alves Tomás Morgado, advogado jovem e ambicioso, residente na vila de Figueiró dos Vinhos, adquire o imóvel com o fim de o habitar mas tambem pelo prestigio que a posse do edifício lhe conferia localmente. A partir desta data o edificio viria a sofrer, gradualmente, algumas alterações na sua estrutura arquitectónica original. Afinal, havia que adaptá-lo à sua nova função de simples casa de habitação e para isso, foram-lhe infligidas intervenções que lhe alteraram a sua fisionomia memorial.O espaço do Pintor sofria a primeira desmistificação e tornava-se em pouco tempo num lugar de ficção patrimonial. A memória era arredada para a sombra, dominada por um novo estatuto dominial.
A grande clarabóia de vidro do atelier foi desmontada, assim como um telhado de duas águas que encaixava no lado nascente do mesmo. As portadas altas e magestosas de ambos os lados dessa sala, foram substituídas por janelas mais pequenas, desarticuladas do conjunto, numa imitação pouco feliz, a fim de dar corpo a uma sala de jantar. A varanda alpendrada em madeira e ferro forjado, foi desmontada e substituída por uma varanda com uma grossa laje de betão e pilares grosseiros do mesmo material. No piso superior, no lado norte, um cunhal apainelado foi totalmente substituído por alvenaria. No Rés-do-Chão, igualmente a norte, a varanda que era aberta e que se prolongava desde a varanda nascente da sala de visitas, foi transformada numa “marquise” fechada e que viria a servir, inclusivamente, durante muitos anos como escola primária privada, ministrada pela última inquilina do “Casulo”.
Em 1944, o proprietário do “Casulo”decide arrendá-lo. O edificio conheceu alguns inquilinos, tendo como última locatária uma ilustre Professora Primária, a D.ª Isabel Semedo e que o habitou durante muitos anos.
Assim e durante quase meio século, a memória histórica daquela casa permaneceu enclausurada e assumiu funções, que o fizeram cair num sono profundo, num estatuto de domínio senhorial e que lhe provocou um coma patrimonial. Só os mais ilustres, familiares, conhecidos e amigos dos locatários, continuarão a usufruir do privilégio de pasmarem perante a exuberância da sala de visitas do Pintor e do espaço que este habitara e que era mostrado, reverenciado e apreciado em privado, como se de um museu particular se tratasse.
Pergunto: porque não acautelou José Malhoa o futuro do seu “Casulo” em favor da edilidade Figueiroense, destinando-o, por exemplo, para uma futura casa-museu, num gesto largo de gratidão pela dádiva que colheu no seu “Figueiró-das-Côres”, que tanto percutiu e potenciou a sua glória como pintor exímio e que lhe garantiu um lugar na história das artes nacionais???
Penso que a resposta a essa questão se deve a cinco motivos:
1- Malhoa nunca deixara de ser um homem simples, apesar dos muitos prémios e homenagens que recebeu, sobretudo na última década da sua vida. A convivência campestre ampliara, de alguma forma, a natureza dessa essência.
É certo que acautelara a sua propriedade de Figueiró, testamentando-a em favor da sua afilhada mas esta, inesperadamente, morre antes dele. Todavia, nunca se preocupou nos meses seguintes em alterar o seu testamento, nomeando outro herdeiro. E isto é um facto!
2- Em 1933, ano da sua morte, o mito nacional de José Malhoa já estava plenamente instituído e para o qual muito contribuiu a reaproximação que o Pintor iniciara à sua terra natal (Caldas da Rainha) a partir de 1926, pela mão de um Caldense dinâmico: António Montês. Este, lançara a ideia de fundar um museu de arte nas Caldas da Rainha com o nome do Artista, reunindo uma comissão denominada “Liga dos amigos do Museu José Malhoa”. Entusiasmado com a ideia museológica, o Pintor faz em 1932 uma importante e valiosa doação de obras de arte, que incluía artistas como Joaquim Prieto, Columbano, Lourdes de Mello Castro e também obras suas, que viriam a ser as primeiras da colecção do seu Museu, o qual obteria o parecer favorável do Conselho Superior de Belas Artes. Deste modo, em 9 de Maio de 1933, é criado, embora em instalações provisórias, o Museu de José Malhoa nas Caldas da Rainha. O pintor vê assim consagrada, ainda em vida e definitivamente, a sua obra, ao mesmo tempo que via tambem assegurada a futura vitalidade da sua memória. Seria nas Caldas da Rainha e não em Figueiró dos Vinhos, que se centraria e integraria a materialidade do seu esplendor artístico e cujas bases sólidas eram sancionadas e apoiadas pelo Estado Português. A sua terra natal entendera o seu valor patrimonial e memorial, bem como a fortuna que tal representava para as gerações futuras.
Figueiró dos Vinhos não passava de um terra de grupos e familias rivais, demasiado “pequena”, como uma terriola onde se colecionavam favores e “dotes”, de caciquismos sistemáticos e de lealdades forçadas por nomes poderosos e abastados, com a politica à mistura e que, consequentemente, condicionava o futuro e a maturidade da vila e do concelho (basta ler os jornais da época). Pergunto-me, se Malhoa não sentiria tudo isto (“Trato de me afastar quanto posso da sociedade porque a conheço a fundo”) e se porventura teria fé em acções inovadoras e progressistas por parte dos figueiroenses que ele representava nas telas!? Acho que permaneceu e viveu aqui, tão-somente, pelo vício inspirador que a ambiência rural e paisagistica lhe facultavam, permitindo-lhe um extenso campo fértil de temas e que transferira para as suas obras mais consagradas. Nunca os Figueiroense teriam capacidade para se unir e constituir em comissão, numa iniciativa idêntica à das gentes Caldenses. Além disso, também não lhe interessava fragmentar a sua memória futura em dois pólos rivais e concorrenciais. Mais a mais, a figura de “Casa-Museu” ainda não estava consagrada na época, bem como a questão dos valores patrimoniais, que não tinham a importância tal como hoje os conhecemos.
3 – Todos os seus entes queridos tinham já falecido. O essencial da sua herança estava assegurado solidamente, tanto nas Caldas da Rainha como em Lisboa. Preocupar-se com o destino do “Casulo” era uma questão secundária e que exigia o dispêndio de energias que já não tinha. Alem disso, não deveria querer que o edifício afastasse os amigos de longa data, por temer a concorrência entre eles, em despeito da doação do mesmo.
4- O Programa Cultural do Estado Novo nunca aprovaria outro pólo museológico dedicado a Malhoa, tendo em consideração a robustez do Museu das Caldas, esse sim, devidamente institucionalizado e sufragado tanto pelo Regime, como pelo próprio Artista. Figueiró dos Vinhos tinha um cunho demasiado provinciano e saloio, que nunca entendeu a essência da filosofia patrimonial, por mais homens importantes, que localmente e eventualmente a pudessem sustentar. Para mais, a vila estava longe de ter as acessibilidades desejadas aos grandes centros urbanos do país.
5- Finalmente referir que para o Estado Novo o património consagrado era o “artístico e o arqueológico”. Dava-se sobretudo valor à instituição museológica e que se dividia em três grupos basilares: museus nacionais, museus regionais e museus municipais mas que oferecessem “tesouros de arte sacra e outras mais colecções (que) oferecessem valor artístico, histórico e arqueológico”( Capitulo V do Decreto de 1932).
O “Casulo” de José Malhoa estava, deste modo, alguns degraus abaixo desta hirarquia de valores e nunca obteria o estatuto de prioridade patrimonial a preservar e, sobretudo, porque não existia oficialmente como imóvel de interesse público sustentado e classificado. Conclusão: a Sociedade Nacional de Belas Artes, não teve outra alternativa senão desfazer-se de um peso que não podia manter e cuja rentabilização patrimonial era complicada, decidindo vendê-lo em praça pública. O Estado, inconscientemente, vandalizava oficialmente. Contudo e paradoxalmente, vejo-me obrigado a reconhecer, que Joaquim Alves Tomás Morgado, ao adquirir o “Casulo” em 1937, evitara que o edificio fosse adquirido por alguem de fora do concelho, ou por algum grupo que o tivesse transformado, irremediávelmente, em qualquer coisa bizarra ou, pior ainda, …por alguem que o tivesse demolido ou transfigurado profundamente. De referir, que a única voz que se ouviu apelando “à Nação” que adquirisse o “Casulo”, para fins públicos, foi a do Dr. Fernando de Lacerda, num discurso que proferiu na sede da Casa da Comarca de Figueiró dos Vinhos, em 06 de Abril de 1955 “para lá instalar uma pousada para estudantes de Belas-Artes”. Contudo, tal apelo não frutificou!
dona_julieta_pinto_abreu_por_jose_malhoaO “Casulo”continuaria à espera, pacientemente, pela hora em que emergiria da sua longa letargia. E será em 1982 que sentirá um laivo de esperança, quando pressente a coragem, a ousadia e a criatividade de um grupo de Figueiroenses, que em Fevereiro desse ano tem a iniciativa de fundar um Centro Cultural em Figueiró dos Vinhos. Uma Associação ousada tomava corpo e começaria a namorar o “Casulo”, ansiando instalar nele a sua sede. Nesse mesmo ano, a Câmara Municipal conseguia tambem a sua classificação como Imóvel de Interesse Municipal, pelo Dec.Lei 28/82.
Parecia assim, que o ano de 1982 prometia iniciar uma nova vida ao chalet de Malhoa, tirando-o do “esconderijo” onde este permanecera quase cinquenta anos, devolvendo-lhe a sua identidade genuína, que ansiava por escrever uma nova página no livro das suas memórias, há muito interrompidas e adormecidas.
No próximo número deste jornal contarei a 3ª “vida” do “Casulo”, que decorre entre 1982 e a actualidade.

As três “vidas” de um “Casulo” de pintura – Capitulo I – Primeira vida (1895 – 1933)

31 Agosto 2008

casuloSegundo a minha perspectiva, o “Casulo” de Mestre Malhoa teve um percurso que se pode repartir em três fases distintas, a que eu chamo de “vidas”: a primeira entre 1895 e 1933; a segunda, entre 1933 e 1982; e a terceira entre 1982 até (Maio) de 2008. Uma nova vida (a quarta) está a iniciar-se, e que será a justa e merecida reconciliação entre a alma desse edificio e a fortuna patrimonial que ele verdadeiramente
representa para a região, cujo valor merece ser recompensado e plenamente vingado. Desta forma, proponho-me explicar em três artigos a saga existencial deste edificio peculiar, que passou as últimas sete décadas arredado num canto, esquecido e substimado nas suas potencialidades genuínas.

Capitulo I – Primeira vida do “Casulo” (1895 – 1933):

Posso afirmar com toda a segurança que foi em Figueiró dos Vinhos que José Vital Branco Malhoa começou a sua “odisseia rústica nacional”.
Sem ser um pintor ruralista dá-lhe para pintar as gentes do campo, como os cavadores, os malhadores, os semeadores, as ceifeiras, as apanhadeiras e vindimeiras, e que cenografam todo um mundo diferente, longe, burlesco e desconhecido, dos salões mundanos lisboetas. As sua retinas copiam o povo tal e qual como ele existe, desfiando um reportório de personagens reais e concretas, que emergem das cores e da luz que magistralmente mistura na paleta para a tela. Fá-lo-à neste canto da província, onde entre 1883 e 1933, veio a viver grande parte da sua vida criativa mas tambem intíma.
O “Casulo” era a base deste “caçador”, que calcorreava esta região à caça de motivos, do rústico, da alma gentia, ginasticando na paleta as aflorações da luz, do tempo e da natureza beirãs. Em dias de sol, Malhoa deixava o seu “Casulo” muito cedo: “Levanto-me às quatro e meia, arranjo-me, e às cinco e meia estou na rua com minha mulher: vamos para um grande maciço de carvalhos ver romper o dia, pinto, gozo, troco impressões com minha mulher. Venho almoçar, e depois pinto à sombra, na minha horta das dez à uma. Janto às duas, vou pintar até ao pôr-do-sol, e depois um grande passeio, conversar com os pastorzitos, entramos às oito e meia, e às nove…cama” (carta a Manuel Sousa Pinto em 1913). Ia por ali adiante, pelas encostas floridas e os vales profundos, em busca de motivos para instalar o cavalete, esquecendo-se das horas que passavam. Tinha o sol como relógio, tal como na faina dos campos, e regressava muitas vezes acompanhado pelos seus modelos campestres, já o sol se escondia para lá dos montes, para o “afago borralheiro do Casulo”.
Para dentro do “Casulo”, trazia os esboços e os apontamentos da força e da simplicidade das gentes do campo, com as suas alegrias, virilidades e sentimentos, que aprimorava nas telas, como companheiros do seu idílio provinciano e que pintava com a alma e com os olhos, como extensões das suas mãos.
Francisco Gabriel, modelo de Malhoa, natural da Lavandeira, dizia:“Quando vinha da escola, encontrava-o muitas vezes a pintar. E parava para estar ali a vê-lo, como faziam muitos rapazes e raparigas”.
A memória do pintor construiu-se assim, numa longa rotina ao longo de cerca de cinquenta anos, entre a sua constante presença humana e uma casa de fisionomia curiosa de cor de tijolo, numa dupla ligação que passou através das gerações, e cujo testemunho material manteve sempre vivo esse fio comunicador e cuja memória devolve o homem que a habitou, continuando a irradiar dela todos os discursos e símbolos que albergou, sobretudo quando se fala no pintor das gentes portuguesas.
casulo_actualA casa nomeia José Malhoa, delimita-o, combina-se com ele e articula-se no artista. Um e outro, mundo natural e ser humano excepcional, alimentaram-se mutuamente dentro daquele espaço edificado.
O “Casulo” de Malhoa, é um brasão patrimonial dos figueiroenses, cujo retorno ao seu convívio tem sido feito num percurso atribulado nos últimos setenta e cinco anos da sua vida, mas que se reergue sempre, teimando em repor tanto a memória, como o lugar real do pintor, da sua paleta e das superfícies das telas que ali fecundou.
O “Casulo”, foi o laboratório onde registou a história social dos campos, o traço típico do português anónimo mas genuíno, onde “reuniu” o povo Figueiroense e as paisagens desta região.
Perto das férias, em 1883, “Subia eu o Chiado e ao voltar para a então Rua de S. Francisco, hoje Rua Ivens, parei para acender um cigarro e esbarro com o colega Henrique Pinto que vinha da Academia de Belas-Artes. Expansões efusivas de camaradas, e o Pinto desafia-me a ir até Figueiró dos Vinhos, terra do nosso Mestre de desenho Simões D’Almeida (Tio), por quem fôramos várias vezes convidados. O Pintor descreveu-me a paisagem. Entusiasmado, combinei partir na companhia do amigo e colega. E…Figueiró cativou-me para o resto da vida” (Carta de Malhoa a Manuel Sousa Pinto, datada de 1913).
Em 1883 tornou-se Figueiroense de alma e coração e pintará com frequência nos seus quadros a paisagem local. Mal despontava a Primavera, entre esse ano de 1883 e o ano em que faleceu, em 1933, partia para Figueiró dos Vinhos onde se demorava até finais de Outubro, regressando a Lisboa pela época das “merendeiras”, que ele tanto apreciava. Em carta de 1913 dizia a um amigo: “Isto tudo quer dizer, que hoje faço quanto posso para estar longe dos homens…e das mulheres tambem! Trato de me afastar quanto posso da sociedade porque a conheço a fundo e sinto amargamente não poder fazer no resto dos meus dias o mesmo que agora aqui estou fazendo (em Figueiró), isto é, passar a vida entre minha mulher, a minha querida Arte, e a natureza, e…esta ainda às vezes me rala, porque quando necessito sol…chove!”.
Neste rincão provinciano passaria largas temporadas e que, nas epistolas aos amigos, confirmava serem os períodos mais felizes de toda a sua vida.
Inicialmente, guardava os seus apetrechos de pintura dentro de uma barraca de horta que pertencia ao farmacêutico da vila – Lopes Serra – e onde este recolhia os utensílios para a lavoura. Porém, Lopes Serra, homem sensível e dado às artes, pressentindo a grande fortuna memorial e o enorme prestigio que a presença do pintor podia trazer à terra, desafia-o a construir algo sólido e convidativo a permanências mais demoradas, inclusivamente, na companhia da esposa e família. Manuel Quaresma aliou-se ao gesto do conterrâneo e prestou-se a oferecer todas as madeiras necessárias para a construção da casa. José Malhoa não hesitou, e entusiasmado aceita o desafio, iniciando as obras em 1895.
Começa por construir, simplesmente, um atelier melhorado, num edifício com apenas 30.00m2 mas rodeado de luz e à volta do qual mandou plantar um grande número de hortenses (ainda existentes), que acentuavam a beleza e o colorido do local.
A “moradia” resumia-se, assim, “a uma pequeníssima casa rectangular apenas com uma divisão”, onde instalou uma “minúscula cozinha”, dividindo a sala com dois biombos, criando dois espaços e que serviam de sala de jantar/estar e quartos para ele e a sua irmã. “De tão pequeno que aquilo era, o pintor baptizou-o com o nome de «Casulo»”, porque aquele espaço representava o isolamento que ele tanto apreciava para o trabalho mais apurado, tal como o casulo é para o laborioso bicho-da-seda, e daí a razão do nome que deu ao seu atelier renovado.
Passados três anos, em 1898, decidiu ampliá-lo segundo um projecto que o arquitecto, e seu grande amigo, Ernesto Reynaud lhe propusera. Este encontrava-se em Figueiró dos Vinhos a dirigir as obras de reconstrução da Igreja Matriz. Malhoa, decide acrescentar ao atelier (o “Casulo” propriamente dito) mais um corpo com dois pisos. Sob a direcção do referido arquitecto, contrataram-se dois especialistas em construção: Júlio Soares Pinto, para a parte das alvenarias e cantarias, e Manuel Granada, perito em carpintarias. Assim, no corpo localizado a Sul ficaria o atelier, que se destinava sobretudo ao trabalho em dias chuvosos, provido com uma grande clarabóia de vidro e amplas portadas de ambos os lados que complementavam a entrada de luz natural. As paredes da sua nova sala de estar, revestiu-as a couro lavrado, com o seu próprio punho, e a ladear o tecto, colocou pequenos quadros, que incrustou em pequenos nichos, e cujos originais foram elaborados por alunos da Academia de Belas-Artes, num total de vinte e quatro pequenas telas. Esta sala era servida por uma bonita varanda alpendrada totalmente em madeira, sobranceira ao jardim onde se encontram as árvores, o lago, as sombras e as flores e, ainda, o “caramanchão das saborosas horas de repouso e lazer”. O seu quarto, no piso superior, era amplamente iluminado por três janelas, que lhe proporcionavam um panorama paisagístico incomparável: “Quando o Mestre subia ao seu quarto no 1º andar, demorava-se muitas vezes a olhar os montes, para além do Zêzere; o Cabril, a Bouçã; Cernache do Bonjardim, Lavandeira e Senhora da Confiança e a sua capelinha” (novamente o testemunho de Francisco Gabriel). No exterior do edifício, cujas paredes são rebocadas a imitar tijolo de burro, incrustaram-se valiosos painéis de azulejos de Rafael Bordalo Pinheiro, que o artista trouxe da sua terra natal. Os azulejos têm motivos curiosos estando igualmente colocados no edifício segundo um esquema temático: a rodear a área de trabalho, os motivos são geométricos, com buris policromados a formarem ilusões florais interligadas; no rés-do-chão da área habitacional, os motivos são gatos pretos, talvez em alusão à noite e aos serões acesos repartidos com os amigos; ao nível do piso superior, os motivos são rãs sob nenúfares. No sótão, cujo polígono estrutural sobressai da cobertura como uma torre, os motivos são flores de lótus e estrelas (a fazer lembrar o símbolo da energia).
Quando o “Casulo” foi inaugurado, por volta de 1905, houve “festa rija” e foi acontecimento que se prolongou durante um dia inteiro. Tal acontecimento serviu ao inspirado maestro da Filarmónica Figueiroense, que aqui vivia, a composição de uma peça musical em homenagem a esse evento – “O Casulo” – e que existe nos arquivos da nossa Filarmónica Figueiroense.
Malhoa celebrará sempre a sua ligação afectiva a Figueiró, assinando os frequentes estudos, não só com a data, mas com a identificação do Local – “Fig. Vinhos” – e tambem com apontamentos nas folhas dos pequenos álbuns de desenho que sempre trazia no bolso, transportando o nome da vila, a sua paisagem, os costumes e tradições para além dos seus limites geográficos.
Desde o longínquo primeiro quadro pintado em Figueiró em 1883 – “O Perrecho” – que a produção artística aumentara em obras telúricas figueiroenses e que viriam a granjear-lhe a fama e o reconhecimento nacional da sua obra, tais como: “Viático ao Termo”, “As Papas”, “A volta da romaria”, “As Padeiras – Mercado em Figueiró”, “Os Bêbados – Festejando o S. Martinho”, “Varanda dos Rouxinóis”, “o Imigrante”, “Ai Credo”, “Vou ser mãe”, “As Promessas”, “Conversa com o vizinho” e muitos outros.
quadro_de_jose_malhoaEm 26 de Outubro de 1933, José Malhoa falece no quarto do seu “Casulo”, vitimado por uma pneumonia. No seu atelier, sob o cavalete, permanecia uma tela que ia tomando forma. Vislumbrava-se um rosto grosseiro de uma velha camponesa, mulher do Ventura, que reflectia um rosto impregnado de sentimento humano, em que a dor e a saudade se misturam e concentram, com os olhos cansados, nariz afilado e boca descaída. Malhoa, para a pintar, contava-lhe histórias que a faziam chorar, a fim de captar as essências da sua alma, que expressassem “o desabar de uma vida que já não merecia ser vivida”. Julgo, que o próprio Malhoa, de setenta e oito anos, se revia neste retrato, de um homem que já fora um folgazão e alegre conversador, que recebera do mundo a glória, mas que no fim da etapa se encontrava isolado, solitário, “esperando da vida que a morte lhe estendesse a mão” (o seu grande amigo Henrique Pinto falecera em 1912, o irmão em 1917 e a esposa em 1919, facto que o mergulharia numa grande depressão de que só recuperaria plenamente a partir de 1926). Essa obra (a última da sua vida) ficaria para sempre inacabada e com ela terminava tambem a primeira “vida” do “Casulo”, que iniciaria um longo interregno patrimonial e que iria durar décadas.
Contarei a segunda vida do “Casulo” – e que se inscreve entre 1933 e 1982 – no próximo número deste Jornal.

Foz de Alge: as “ferrarias” do Império

15 Agosto 2008

ruinas_das_ferrariasQuando olho as paredes em ruínas das antigas Ferrarias da Foz de Alge, sinto admiração pelo nosso passado, quando procurávamos bastar-nos a nós próprios. Retirávamos da natureza tanto os nossos melhores produtos agrícolas e florestais, como os vários minérios com que alimentávamos o sonho da nossa independência económica, saídos dos recursos do nosso solo e subsolos portugueses. Foram esses mesmos recursos, em grande parte, que possibilitaram o nosso temperamento aventureiro e que nos levou a sulcar os oceanos, procurando muitas vezes em terras longínquas aquilo que tínhamos em nossa casa e cujo valor subestimávamos. Mas foi igualmente através deles que potenciámos a nossa tenacidade para expandir um pequeno país, que ousou tantas vezes surpreender o mundo.
Desta forma, inicio este artigo sobre as antigas Ferrarias da Foz de Alge e do Reino de Portugal, e que faziam parte de um imenso laboratório metalúrgico nacional, onde exímios mineiros, ferreiros e metalurgistas contribuíram para a emergência de uma indústria, que foi fundamental na história do país e dos homens que o serviram. A indústria do ferro em Portugal intensificou outras indústrias afins e beneficiou a sociedade e a economia do país. Ligava-se intimamente ao sector florestal em complemento com uma precária economia de base agrícola, movimentando milhares de braços e energias, num esforço contributivo de uma nação ávida de se libertar de jugos económicos estrangeiros, entre os séculos XVII e XIX.
Desta forma, os primórdios da indústria do ferro no nosso país, chegam às matas da Foz de Alge, que contribuiu também para esse labor intensivo e ao qual devemos render homenagem em sua memória.
Na região do interior, num país onde as actividades económicas estavam intimamente ligadas ao sector agro – pastoril, o início de um empreendimento de uma unidade de mineração e de transformação do ferro, pelo menos desde 1654 (D. João IV), era no mínimo surpreendente. ferrarias_da_foz_de_alge
Geologicamente, o concelho de Figueiró dos Vinhos é constituído por xistos, grauvaques, granitos e também de alguns quartzitos. Contudo, o ferro (e também o ouro, no Rio Zêzere) foi explorado com objectivos económicos, de forma mais intensa, pelo menos desde meados do séc. XVII, sobretudo nas freguesias de Campelo e de Figueiró dos Vinhos. Das jazidas exploradas para prover minério à unidade fabril, posso referir a mina da Ribeira da Provença, localizada entre as Bairradas e o Vale do Rio, e que pode ser estudada em íntima ligação às Ferrarias da Foz de Alge.
Assim, no pequeno estuário formado pela Ribeira de Alge com o Rio Zêzere (o qual delimita o concelho de Figueiró dos Vinhos a Sul), na margem esquerda dessa ribeira, e a cerca de 10 Kms da Vila de Figueiró dos Vinhos, existe ainda hoje o que resta das ruínas de uma antiga fábrica de fundição de ferro, e que no seu tempo foi das melhores do país.
Pode-se também afirmar, que existem muito poucas unidades proto-indústriais de transformação do ferro em Portugal, que se possam comparar às das ferrarias da Foz de Alge, e que fazem delas um importante património arqueológico, não só local, mas também de âmbito nacional, à espera de serem mais estudadas e sobretudo intervencionadas. As ferrarias da Foz de Alge ainda se mantêm perceptíveis, embora a localização das mesmas, em leito de ribeira, lhe imponha o risco do seu total desaparecimento, dificultando a sua conservação como estrutura arquitectónica identificável e monumental. A construção da barragem do Castelo de Bode (inaugurada em 1951), e que elevou o nível das águas do Rio Zêzere para a cota 122.00, fez submergir o que restava do antigo complexo, que ficou à mercê dos caprichos da albufeira, e que só em raras ocasiões põe totalmente a descoberto o que ainda não foi consumido pela natureza e pelo tempo. Recentemente, a construção de uma nova ponte desfechou mais um golpe neste património, infligindo severas perdas e danos às ruínas, tendo feito desaparecer a Casa do Administrador. Infelizmente, a pouca sensibilidade para as questões patrimoniais por parte dos meus conterrâneos, não lhes permitiu perceber a fortuna patrimonial e a susceptível e potencial musealização do local. Para além da preservação/recuperação das ruínas, podia-se ter construído um pavilhão de apoio localizado nas suas proximidades (na Cova da Eira ou na Foz de Alge) e que permitiria a constituição de um núcleo de pesquisa e estudo da mineração e transformação do ferro em Portugal, dotado com maquetes, modelos, mapas, brochuras temáticas, e artefactos arqueológicos que tivessem sido lá produzidos (canhões, balas de artilharia, pregaria, baionetas, espingardas) fotos, desenhos, fogões para aquecimento, alfaias agrícolas, etc. Tal núcleo, para alem de integrar e enriquecer uma Rota Turística, poderia ser visitado por escolas, alunos universitários, estudantes-investigadores, etc. Não imaginam a quantidade de trabalhos científicos e de divulgação, que pólos do género produzem todos os meses por este país fora. Empreendimento esse, que poderia ter sido adicionado às potencialidades turísticas da “nossa” Foz de Alge, agora dotada com um magnifico Parque de Campismo plantado à beira do Rio Zêzere e onde poderá ser igualmente construída uma unidade turística interligada com os recursos da região. Deste modo, poderia ter sido dado àquelas ruínas um lugar de destaque, para a pesquisa e conhecimento arqueológicos da produção do ferro proto-indústrial em Portugal. Mas infelizmente, entristece ver perder-se debaixo das águas e do lodo da Barragem do Castelo de Bode o sonho dos nossos antepassados, cuja memória merecia ser salvaguardada, entendida, estudada, divulgada, homenageada e preservada.planta_das_ferrarias_da_foz_de_alge
Aquela fábrica fundiu canhões, peças de artilharia naval e de fortificações militares, pregaria para as naus, canos de espingardas, baionetas, varetas, fechos e folhas de espadas, fogões para aquecimento (um deles está no convento de Mafra), alfaias diversas para a agricultura, etc. Em 1936, o Engenheiro António Arala Pinto (na altura chefe da 3ª Circunscrição Florestal) encontrou na mata circundante às ferrarias, “uma dúzia de moldes de balas, um contra-molde dum fuso de madeira, e o molde dum cano de canhão habilmente malhetados”, bem como picaretas, hematites e diversas balas de artilharia de calibragens diferentes. Gostaria de saber onde param todos esses objectos!? Servem também como testemunho da capacidade produtiva da fábrica da Foz de Alge, as memórias de um nobre português (António da Rocha Barbosa), em que enumera os produtos saídos das forjas das ferrarias “desde o anno de 1734” (e que eram as seguintes): “231 peças d’artilharia de vários calibres, pesando juntas 6337 arrobas; 6078 balas de munição, pesando 282 arrobas; dois fogões grandes, um para Mafra, e outro para o Conde de Unhão, pesando juntos 347,5 arrobas; de ferro batido: 1273 arrobas de pregos e cavilhas; um fogão para o hiate de Sua Majestade, 19 arrobas; 75 arrobas de ferro, em três carradas, para o convento e Igreja dos Religiosos de S. Domingos da villa de Pedrógão”.
O combustível usado para a fundição era a cepa de moita e com a qual se fazia o carvão. Esta encontrava-se nos montes circundantes à fábrica, muitas vezes em locais de difícil acesso. Era arrancada pelos moradores da região que faziam disto a sua profissão/ocupação, nos intervalos das suas actividades agrícolas. O transporte dos materiais era feito por carreiros com juntas de bois alugadas e depois por barco até Lisboa.
As minas de ferro que abasteciam a fábrica durante a sua existência eram, entre outras, as de Barranca, próximo de Alqueidão de Maçãs de D. Maria; as do sítio do Pinheiro, termo de Pousaflores, donde se extraiu ferro durante mais de duzentos anos; junto à Serra de Alvaiázere, no sitio do Sobral, freguesia de Maçãs de Caminho; na Rapoula, Serra de Aguda, freguesia de Avelar, e junto à Ribeira da Provença, entre Bairradas e Vale do Rio, no concelho de Figueiró dos Vinhos. O transporte da matéria-prima até à Fábrica fazia-se em moldes idênticos ao que era utilizado para o produto acabado.
As ferrarias da Foz de Alge usufruíam e aproveitavam duas energias vitais para o funcionamento das suas forjas e martelos de refino: a energia hidráulica, com o caudal da Ribeira de Alge, que mesmo no pico do Verão se mantinha com a força motriz necessária para accionar os foles das fornalhas, e cujo (grande) Açude – 80m de largura por 7m de altura – localizado a 300m para Norte, era vital para a canalização de água que fazia “mover máquinas e engenhos”; e a energia eólica, que accionava também foles de algumas fornalhas (caso faltasse a água), aproveitando os ventos dominantes de norte e que percorriam o pequeno estuário formado pela confluência da Ribeira com o Rio Zêzere.
Mostro uma planta destas ferrarias, que elaborei com base numa antiga planta de 1804 e que actualizei com base num inventário de 1857, e que apoiada num levantamento topográfico (que realizei a parte das ruínas) e num ortofotomapa do local, dá uma ideia daquela que foi uma das mais importantes Fábricas de Ferro do Império Português.
Este artigo é em honra daquelas pedras e dos homens que as ergueram e cuja fortuna foi esquecida.
A terminar, será também justo mencionar o apoio, que os livros de Carlos Medeiros «Figueiró dos Vinhos, Terra de Sonho», e o de António Arala Pinto «O Pinhal do Rei», me deram para a elaboração do presente artigo, para além de outras fontes que consultei, entre as quais a «Monografia do concelho de Figueiró dos Vinhos».
planta_das_ferrarias

Partidos políticos e candidatos à “Coisa Pública”

31 Julho 2008

politicos_wgHá cerca de duzentos anos, a Revolução Francesa (1789-1799), alargou o campo da política, estendendo-a ao alcance de todos os cidadãos e a todas as actividades, deixando de ser apenas apanágio de um grupo minoritário, intimamente ligado ao poder. A felicidade tornou-se numa noção clara e um direito do indivíduo, e o Estado assumia a responsabilidade pela manutenção dessa condição. A política tornou-se coisa de todos e polarizava-se como mais um instrumento do pleno humanismo social e que tornava o homem, cada vez mais, dono do seu próprio destino, donde irradiava toda a evolução do mundo. A “coisa pública” abria-se ao cidadão comum, e despia-se do secretismo que envolvia a administração do Estado.
Dessa Revolução surgiriam os “Agrupamentos”, os “Clubes” e as “Sociedades Populares” e que seriam os primórdios dos futuros partidos políticos. Durante a era Liberal (séc. XIX) estes grupos não passavam de facções locais, que se formavam apenas com a aproximação das eleições, para preparar os seus candidatos, apoiá-los e patrociná-los, desfazendo-se logo a seguir ao acto eleitoral. Pouco a pouco, estes grupos passam a ter uma vida existencial permanente e formulam as suas doutrinas políticas. Contudo, funcionavam mais como centros de pressão e influência, e com os quais se pretendiam instalar nos círculos do poder, do que como representantes de verdadeiros programas solucionadores das maleitas nacionais.
Com o advento do sufrágio universal e a crescente institucionalização dos actos eleitorais patrocinados pela corrente democrática, estes Grupos tornam-se em algo mais. Começam por se formar de modo institucional e passam a ser verdadeiras “escolas” de pensamento, centros de reflexão, de doutrinas e ideologias políticas que propagam, e cuja actividade vai também assegurando uma certa educação política às populações. Assim, de partidos de “notáveis” (no liberalismo) passam a partidos de militantes (na democracia), federam-se internacionalmente e alargam constantemente as suas bases. Passa-se de uma vida politica confinada aos círculos mundanos ou aos Clubes, para uma vida politica mais alargada e onde todos podem participar, com comícios e campanhas eleitorais nas praças públicas, nas avenidas, nos teatros, etc. Os chefes desses partidos passam a ter o estatuto de figuras públicas conhecidas, a sua voz representa as massas anónimas, que lhe conferem um poder legitimador e que o Estado aprendeu a respeitar e a não subestimar.
Hoje em dia, todos podem intervir activa e livremente na política, sem constrangimentos de qualquer ordem. Qualquer um se pode filiar (ou simpatizar) livremente num qualquer partido político. Tanto assim é, que os grandes partidos medem a sua “grandiosidade” pelo número de militantes que têm e que, constantemente, exibem como credenciais.
No nosso país, somente após o 25 de Abril de 1974, se instituiu o modelo democrático do sufrágio universal, isto é, o povo, na sua totalidade, e mediante as fórmulas democráticas, conquistou a soberania de eleger periodicamente os seus governantes – seja a nível nacional ou local. Antes de 1974, e durante a vigência do Estado Novo, os Presidentes das Câmaras (e que se chamavam “Presidentes das Comissões Administrativas”) eram nomeados pelos governadores civis e eram quase sempre escolhidos de entre os notáveis dos concelhos. Em 12 de Novembro de 1976 realizam-se em Portugal as primeiras eleições democráticas – eleições legislativas – e a 12 de Dezembro do mesmo ano, as primeiras eleições para os órgãos das autarquias locais. Desde aí, já houve nove eleições para escolhermos os nossos Presidentes de Câmara.
Deste modo, foi tambem dada às populações a soberania para julgar, avaliar e escolher, quem se propõe para governar as suas terras. Assim, os políticos autárquicos sabem bem, que prestam contas às suas populações de quatro em quatro anos. O povo ou aprova a sua continuação à frente das Câmaras Municipais …ou demite-os, pura e simplesmente.
A conquista do poder, é feita numa espécie de vindima eleitoral, revestida de colorido, com muitas bandeiras e bandeirinhas, camisolas, cachecóis, autocolantes, cartazes cheios de mensagens “hipnóticas” e automáticas, com os políticos de porta a porta, a interromperem-nos o jantar, para distribuírem as suas “promessas”, as suas “soluções” milagrosas, a falarem-nos ao coração, numa grande máquina “politiqueira” bem montada e organizada, e que quase sempre termina com uma grande caravana automóvel, com os partidos rivais a verem quem leva mais carros, e no fim, apoteoticamente, num grande comício inflamado na principal praça ou rua da terra, e que se esforçam para apinhar de gente.
As semanas das campanhas eleitorais transformam, deste modo, o país num imenso palco de propaganda e de exaltação das personalidades politicas, recheadas de discursos providenciais cheios de tudo (ou quase tudo) que prometem resolver. Se este jogo pela conquista do poder antigamente privilegiava as elites, hoje, infelizmente, favorece o populismo, a cara conhecida, o nome sonante, e que nem sempre são sinónimo de competência para gerirem a “coisa pública”. Alimentados por uma bem articulada estrutura de influências, os partidos políticos estão-se a transformar, novamente, em meras agências de “notáveis” que pretendem eleger, servindo-se de uma bem montada rede mediatizada (e publicitária), tudo fazendo para defender o seu “mercado eleitoral” e os candidatos que patrocinam.
Os partidos políticos nasceram para serem locais de debate de ideias, de diagnóstico ideológico e de argumento reflectido. Todavia, em pouco tempo, conseguiram transformar-se em instituições descredibilizadas e arcaicas, geridas muitas vezes por autênticas famílias feudais, ansiosas por controlarem tudo, incluindo os anseios da sociedade civil, para onde estendem as suas influências tentaculares. Agravam assim, a apatia dos cidadãos, que se vão afastando cada vez mais da intervenção politica, “doentes” e esvaziados dos seus sonhos e expectativas, porque os “seus” políticos se desligam cada vez mais do mundo das pessoas reais e dos problemas que tardam, ou esquecem de resolver.
Muitas vezes pergunto, se hoje em dia os cidadãos votam em programas e ideias, ou se em pessoas e em partidos?! Sou levado a acreditar que, infelizmente, raras são as vezes em que votam nas duas coisas juntas. É pena, porque a liberdade de escolha e o direito de voto, que foi oferecido a todos, é a mais sagrada conquista da democracia, que dá às populações o poder e o desígnio de escolher os seus governantes. Mas é também, simultaneamente, a arma mais importante do direito colectivo, porque simboliza, afirma e impõe a sua soberania perante um Estado tantas vezes prepotente. Contudo, este direito que o povo detém, tem que ser um direito de plena consciência, bem esclarecido e não submetido unicamente à pressão e ao fascínio das épocas eleitorais, para evitar que a politica se torne numa espécie de antecâmara, onde se trocam favores e se negoceiam “dotes”. As Assembleias Municipais, começam a assemelhar-se a locais onde se usa mais a táctica e o ardil político do que a construção e a promoção do diálogo através do debate de objectivos, que visem solucionar os reais anseios das populações. Os partidos políticos deviam ser exemplos desinteressados para as ideologias que representam e orgulhar os adeptos que pretendem conquistar para as suas causas. Contudo, tornaram-se grupos de pressão poderosos e formadores de opinião, com uma retórica vocabular eloquente e artificialmente construída, com que cenografam e manipulam as emoções. Cheiram demasiado a ambição pelo poder, caindo facilmente em incoerência ideológica, vivendo muitas vezes do clientelismo fácil e de lealdades fabricadas e que se vão cultivando numa espécie de “municipalismo paroquial”. São polvos que tentam chegar a todos os lugares onde cheire a poder e, caso seja necessário, não hesitam em mediatizar-se e a instalar-se nos jornais e nas associações locais, com a intenção de fiscalizarem todo o tipo de decisões e, deste modo, anular adversários, que se possam transformar em contra-poderes dos seus complexos jogos políticos.
Muitos são também os “notáveis”, que estão mais preocupados com as suas carreiras politicas do que com o interesse genuíno das populações. Muitas vezes, aqueles que se apresentam como candidatos, propondo-se para liderar o futuro e o destino dos seus concelhos, são fruto de estratégias partidárias, realizadas em reuniões onde poucos falam e onde o segredo envolve as decisões, não restando ao partido outro remédio senão nomeá-los como tal.
Contam “afirmar-se” com o tempo decorrente das campanhas eleitorais mas que é manifestamente insuficiente, para avaliarmos as suas ideias e as soluções que propõem. O folclore eleitoralista enfeita facilmente as suas mensagens de “esperança” e cheias de “providencialismo”.
Os candidatos ao governo da “coisa pública”, deviam forjar as suas credenciais pessoais no meio da comunidade, e que dizem representar, longe das campanhas eleitorais, donde sairia também um programa e um projecto, erguidos com os contributos colhidos no terreno e da boca dos seus concidadãos. O que as populações almejam são políticos sem máscara e não “actores” com o papel bem decorado.
Não existem pessoas naturalmente talhadas ou nascidas para os cargos de chefia politica, nem mesmo aqueles que exibem constantemente os seus altos curriculuns tecidos e aprimorados por uma qualquer carreira politica e que parecem fazer deles seres de outro mundo, infalíveis e inquestionáveis. Não!!
Os candidatos aos cargos políticos deviam, acima de tudo, constituir-se por homens e mulheres de consciência, que pretendam exercer os cargos governativos sem vaidade pelos seus lustrosos estatutos, suportando-os com modéstia e, de igual forma, sabendo aceitar humildemente os seus erros junto das (suas) populações, a quem constantemente devem tambem saber pedir conselho. A juntar a isto, deviam ter a ciência necessária, que lhes permita serem tanto animadores, como bons gestores da vida das comunidades locais, munirem-se com a necessária flexibilidade humana e dotarem-se, simultaneamente, com a imprescindível competência técnica, qualidades que lhes permitiriam agilizar esses altos cargos, e cujo exercício está longe de ser fácil, exigindo-lhes muita abnegação, humildade, trabalho e sabedoria genuínas.
Mas deviam sobretudo, serem feitos daquela matéria com que se fazem os sonhos colectivos. E seria bom, que esses pretensos candidatos a “homens do leme”, saíssem tambem do meio desses sonhos, prontos a inscreverem no futuro uma história comum e que orgulhasse gerações passadas e presentes, bem como as vindouras.
Contudo peço-lhes, que antes de se apresentarem como candidatos, julgando-se já aptos para exercerem os deveres da “coisa pública”, que tenham a fortuna e a coragem, de saberem observar e aprender com o exemplo daqueles que, presentemente, de norte a sul do país, ainda praticam e exercem o poder pelo puro prazer de servir as suas populações.
O novo ano que se aproxima – 2009 – vai ser fértil em eleições e campanhas eleitorais. Os portugueses irão ser chamados a votos por duas vezes: uma para elegerem os seus representantes ao governo do país e a outra para elegerem os órgãos das suas autarquias locais. Vai ser um ano em cheio para os “profissionais” da política. Irão aparecer nas nossas caixas de correio os panfletos e as mensagens do costume, na televisão vamos ter que aturar os tempos de antena dos vários partidos políticos e na rua vamos ser muito bem cumprimentados por pessoas que raramente falavam para nós, e que agora acrescentam uma outra mesura ao cumprimento.
A democracia não é um sistema perfeito, todavia, ainda não foi inventado um melhor e que permita às comunidades ter, pelo menos, a sensação de que a sua opinião tambem conta para as decisões dos poderes instituídos. Que o digam os nossos pais e avós que viveram épocas muito complicadas, em que as suas ideias não gozavam de qualquer liberdade expressiva.
Acredito, que por este país fora, já há quem prepare a “máscara” para usar no longo ano eleitoral que se aproxima, que já ensaie vários discursos para vários cenários, e que já treine sorrisos pepsodente e palavras de circunstancia e simpáticas para quando nos apertarem a mão, ou nos beijarem os filhos, com o folclore e as maquilhagens do costume. Uns a quererem ser donos do poder, outros a quererem exercê-lo para sonhar futuros comuns. E perante aqueles que se disfarçam para disputarem as eleições, o nosso exercício está, exactamente, em saber discernir, quem é quem por detrás da “máscara”. E isso só é possível com liberdade de expressão e em democracia.

A “velha” Rua que ousou ser moderna…

06 Abril 2008

rua_2008A rua é o espaço público por excelência e pode ser ou não, complementada com praças, zonas de lazer, mobiliário urbano, etc. São fóruns de convívio, de mobilidade e comunicabilidade. Nelas também circula o espírito colectivo exercendo a sua plena cidadania. Para alem de serem espaços óbvios de circulação, são igualmente espaços de lazer, de encontro, de conversação mas também património a preservar ou a melhorar e que evoluem das necessidades decorrentes da evolução natural do homem.
Desde a Antiguidade, que cidades surgiram, transformaram-se, evoluíram. Outras houve que desapareceram, perderam importância, ultrapassadas pela evolução civilizacional. O mundo não é o mesmo desde ontem! Desde que se “inventou” o Planeamento Regional e Urbano, que a requalificação urbana é entendida como uma doutrina para servir e melhorar o que já existe. Melhorar as localidades e a qualidade de vida das populações, melhorar o sentido estético de vilas e cidades, conferindo-lhes mais beleza, assegurar o orgulho dos seus cidadãos e a admiração de quem os visita. Estes foram sempre objectivos prioritários e comuns ao longo dos tempos. A nossa “velha” Rua já é muito antiga. A sua definição física formou-se ao longo do século XIX. figueiro_dos_vinhos_1900Em 1900, chamava-se “Rua Visconde de S. Sebastião”. Nessa altura já era uma das principais artérias da vila. Depois, nos anos 40, passou a denominar-se Rua Dr. Manuel Simões Barreiros, em justa homenagem a este grande vulto figueiroense, mantendo esse nome até à actualidade. Começou por ser em terra batida, sem passeios, porque os carros eram raríssimos ou mesmo inexistentes na nossa vila. Nos anos 40 ganhou um esboço de passeios para os peões, começando a separar-se o que era espaço para pessoas e veículos. Os passeios ganharam mais visibilidade e foram melhorando ao longo das décadas seguintes. A Rua não parava de evoluir, recusava-se a ficar parada no tempo. No final dos anos 80 e inícios de 90, começou a perceber-se que os passeios se “tornavam” estreitos, porque aumentara o número dos que a utilizavam, acedia-se mais a ela, por esta ter conquistado a excelência comercial da terra. O trânsito também se tornara mais intenso. Adquirir um veículo democratizara-se plenamente. Hoje todos temos automóvel! A “velha” Rua, apresentava passeios de ambos os lados, estrada para os carros e estacionamento (apenas num lado), que começou a ser pago e com tempo limitado, a fim de evitar abusos e manter uma alternância equilibrada e justa entre os automobilistas. Mas era tudo muito apertado! A simbiótica viária da rua precisava uma vez mais de ser reajustada com o progresso. Rebentava pelas costuras! Assim, em 2007 a “velha” Rua entrou novamente em obras que a modificaram RADICALMENTE! Ficou mais bonita, agradável à vista, parece até mais larga, com uma aparência “moderna”, adequada aos tempos que se vivem à semelhança do que se vai fazendo noutras vilas e cidades. Ninguém negará ou contestará que ganhou em beleza estética. Contudo, algo não vai bem na “modernidade estética” da “velha” Rua! Com este mote, passo à questão fulcral deste artigo:
No passeio (largo, bonito, com floreiras e que se situa no lado dos correios) ninguém se entende muito bem, entre carros, pessoas, comerciantes, sinalética de trânsito, etc! Os peões que ousarem ou tiverem a necessidade de fazer o percurso por esse lado, têm que se sujeitar muitas vezes a autênticas gincanas por entre os carros literalmente estacionados, entupindo as entradas dos estabelecimentos e a circulação pedonal nesse passeio. Dificuldade mais sentida nas pessoas idosas e nos deficientes que se movem em cadeira de rodas. Há pessoas que ainda não entenderam que uma requalificação altera sempre as regras. E as da circulação dessa rua foram alteradas, enquadrando-se na sua nova funcionalidade, cuja filosofia central a pretende oferecer mais às pessoas do que aos carros. As alterações são simples mas urgem ser consciencializadas e respeitadas para que na prática demonstrem civismo de atitudes. Acontece, que muitos condutores figueiroenses (e não só), fazem daquele passeio o seu lugar privado de estacionamento, como se fossem donos de um bocado dele, com uma facilidade que lhes é facultada pela inexistência de barreiras físicas que os desencorajem. É o típico comportamento da “espertalhice portuga”! E também não é legitimo exigir ou culpabilizar a GNR, para que esteja permanentemente presente para regular o que deveria ser regulado “civicamente”. E é aqui que entra o termo “falta de civismo”, muito complicado de engolir. Mas infelizmente, e acima de tudo, esta é a principal verdade que desequilibra a inovação da rua: falta de civismo nas atitudes e comportamentos que alguns cidadãos manifestam no seu dia-a-dia, com práticas que em nada contribuem para a plena satisfação colectiva. Contribuirão esses condutores para dignificar uma obra que valoriza a terra, só porque insistem em não respeitar regras simples e bem definidas? Não teremos parques de estacionamento na vila (um deles até coberto)? Precisarão as boas regras de convivência estar igualmente definidas na lei e nas posturas municipais? Serão estes senhores os mesmos que se indignam com a falta de educação, disciplina e autoridade que reina nas escolas?! Que se irritam cada vez que alguém não cumpre as regras mas que só vêem as questões no lado dos seus interesses directos?
rua_anos_50Todavia, dentro das regras estabelecidas também há lugar à tolerância e à compreensão para certos “infractores”. Por exemplo, ninguém estranhará se um comerciante dessa rua estacionar MOMENTANEAMENTE a sua viatura no passeio por necessidade da sua actividade profissional, ou que os seus fornecedores também o façam. Estamos numa terra onde todos se conhecem, e não numa grande cidade de gente anónima. Aliás, tenho muito respeito pelos nossos comerciantes, porque são sempre os primeiros a ceder nas mudanças, discutindo-as é certo, mas aceitando contribuir para tornar a vila diferente e original em relação às vilas que nos rodeiam, desde que a “modernização” se faça sem a descaracterizar.
Esta “modernidade” tão clamada por alguns e um pouco por todos, não tem só a ver com edifícios, passeios, praças e ruas. Tem sobretudo a ver com as pessoas e a sua capacidade de aceitarem civicamente as mudanças (fruto da natural dinâmica urbana), numa coerência entre o seu discurso e a prática. Não há quem resista ao permanente descontentamento, quase generalizado, dos meus conterrâneos, que muitas vezes não sabem o que querem. Senão reparem: clamavam por uma “biblioteca moderna”, construiu-se-lhes uma; protestavam pela falta de “uma casa de cinema como deve ser”, deu-se-lhes uma, com sala para exposições e tudo; indignavam-se porque não havia um parque de campismo no “paraíso” paisagístico da Foz de Alge, aí está um, mesmo à beira do rio; reclamavam porque não havia uma “piscina decente para os miúdos”, fez-se uma coberta e aquecida; barafustavam porque não havia um “campo de futebol de jeito para a nossa Desportiva”,…aí está um e que poucos concelhos têm, com bancadas cobertas e relvado; amuavam porque não tinham campos de ténis para praticarem “esse desporto diferente”, fizeram-se dois! rua_anos_90Mais exemplos poderia apontar, mas estes chegam e sobram para concluir aos meus conterrâneos o seguinte: Quantos são os que vão habitualmente à biblioteca municipal? Quantos são os que, para alem do cinema, visitam as exposições, aplaudem as conferencias e o teatro na Casa da Cultura? Quantos são os que trocam o “shoping center” na cidade, por um passeio até à Foz de Alge com a família? Quantos são os que assiduamente frequentam a piscina municipal? Quantos são os que contribuem para “encher” as bancadas do Campo de Futebol novo? Quantos têm raquetes de ténis em casa? E já agora, quantos são os que estão preocupados com o destino do nosso “Casulo” de Malhoa?
Não há politica cultural, desportiva, recreativa, social e urbanística, que consiga satisfazer aqueles, que continuamente, “choram de barriga cheia”! Muitas vezes fazemos mau uso da liberdade e que a democracia concedeu à nossa cidadania, porque em atitudes simples no nosso dia-a-dia, não hesitamos em cercear a dos outros, não por necessidade…mas por puro egoísmo e comodismo!
A “velha-nova” Rua Dr. Manuel Simões Barreiros, está dentro de uma nova cultura visual e urbanística mas não tem o apoio da parte cívica, que não a deixa ser plenamente funcional. Sonhamos muito, exigimos demasiado, mas individualmente! Porque na prática não conseguimos compartilhar sonhos e ideias uns com os outros. E desta forma, não há terra nenhuma que “vá para a frente”, porque somos uns eternos inconformados e ingratos com aqueles que ao longo do tempo e com muitos sacrifícios, nunca desistiram em tentar transformar os nossos sonhos em realidade!

Ser eterno (Geração sonhadora)

16 Março 2008

foto_ge_O que foi que ficou de todas as escolas por onde passámos? Que frases ficaram inscritas no quadro, onde o giz serpenteava?
Na escola onde andei, ainda lá está a velha árvore onde inscrevi o meu nome (“Tó-Zé – 3º A”), com o canivete da minha inocência. Foi há 33 anos!!
Tinha um grupo, rapazes e raparigas fantásticos. Alguns já não os vejo há décadas, outros já “partiram”, mas recordo-me de todos eles.
Quem não se recorda desse tempo, dos 15 anos, quando trocávamos sonhos uns com os outros e sempre à procura de discípulos para os nossos poemas, das histórias que inventávamos e sempre com o sol por companheiro, que repartíamos entre todos, cheio de cores mágicas, cores com que inventávamos os dias?! Com os olhos escrevíamos o sol, enquanto cantávamos as canções dos nossos ídolos cabeludos, de mochila às costas com o gravador a pilhas sempre aos “berros” e ligado no máximo. “Onde está a malta?”, era a pergunta do costume. Transformávamos as quatro estações do ano numa só: a Primavera eterna, que era só nossa e que bebíamos no jardim e pelas ruas da vila por entre mãos em mil triângulos de luz, na aventura de sermos alguém, cheios de sonhos onde caíam todas as cores dos pores-do-sol doirados. Clubes, esquemas, mundo de surpresas, de dias e dias, como se fosse sempre um longo Maio eterno. Agora aos 46 anos, tenho vários oásis de memórias, que revejo muitas vezes de alma apertada e que são como que peregrinos atravessando e enchendo a minha vida, cheia dessas vozes longínquas, desses dias em que pensava ser eterno. E se acaso fechar os olhos em finais de tardes como esta, vendo a alegria desta maravilhosa geração sonhadora, torno o meu universo instável, que acorda o adolescente que ainda há em mim, regressado desse mundo onde viviam as alegorias doces, tempo onde se fabricavam futuros, tempo inventado, com a alegria sempre aos ombros, dos dias cheios de segredos e que rompiam pelas manhãs fora. Coleccionávamos sonhos que colhíamos uns com os outros. E neste final de tarde, encho-me de nostalgia, que me relembra os dias da minha adolescência, sempre insuficientemente vividos. Tenho saudades dessas horas instáveis, cheias de mistérios mas que guardo preciosamente em baús cheios de recordações doces. E é assim, que nesta tarde crepuscular quase primaveril, me revejo a mim trinta anos atrás, numa intensidade que quebra as fronteiras conhecidas. E sinto nesta brisa que acompanha o fim de mais um dia, alevantando folhas e memórias, vindas desta alegria inspiradora e tranquilizadora, a serenidade necessária que me relembra, que seja qual for a idade que tenhamos, é sempre possível inventar palavras novas, sonhos cheios de visões, porque somos personagens incríveis, de alma ilimitada. E ao vê-los abraçados em grupos a tirar fotografias, a autografarem as camisolas uns aos outros, aos saltos entoando “gritos de guerra”, com a alegria contagiosa que invade tudo e todos, numa dimensão que lhes dá a aura de deuses do Olimpo, tomo consciência, que afinal ainda temos TODOS capacidade para nos rirmos diante do espelho, enquanto acreditarmos que a vida ainda se revela, como o outro lado do mesmo riso, trocando as voltas às forças do destino.
Existem sonhos! Temos de aprendê-los, de manifestá-los, penetrar neles e conhecê-los! Acreditar é a palavra mágica! Se não acreditarmos nada valerá a pena e vale mais desistirmos! Mas os sonhos nunca desistem, só aqueles que se afastam deles. E se os sonhos que tínhamos tiverem adormecido, basta acordá-los. E para os acordar bastam palavras simples, dessas que os transportam para todo o lado, ou então uma praça como esta e onde eu estive, cheia de jovens sonhadores, a viverem a eternidade! E a eternidade vive-se na felicidade, nem que ela dure apenas um final de tarde, no meio dos nossos sonhos, aos “pulos” com estes jovens poderosamente felizes e eternos.

“Era um tempo,
e que tempo era…
um tempo de inocência,
um tempo de confidencias.
Há muito tempo, deve ter sido…
Tenho uma fotografia,
Guarda as tuas recordações:
– É tudo o que ficou de ti!”

(‘Bookends’ © Simon & Garfunkel)

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