As três “vidas” de um “Casulo” de pintura – Capitulo I – Primeira vida (1895 – 1933)

Agosto 31st, 2008

casuloSegundo a minha perspectiva, o “Casulo” de Mestre Malhoa teve um percurso que se pode repartir em três fases distintas, a que eu chamo de “vidas”: a primeira entre 1895 e 1933; a segunda, entre 1933 e 1982; e a terceira entre 1982 até (Maio) de 2008. Uma nova vida (a quarta) está a iniciar-se, e que será a justa e merecida reconciliação entre a alma desse edificio e a fortuna patrimonial que ele verdadeiramente
representa para a região, cujo valor merece ser recompensado e plenamente vingado. Desta forma, proponho-me explicar em três artigos a saga existencial deste edificio peculiar, que passou as últimas sete décadas arredado num canto, esquecido e substimado nas suas potencialidades genuínas.

Capitulo I – Primeira vida do “Casulo” (1895 – 1933):

Posso afirmar com toda a segurança que foi em Figueiró dos Vinhos que José Vital Branco Malhoa começou a sua “odisseia rústica nacional”.
Sem ser um pintor ruralista dá-lhe para pintar as gentes do campo, como os cavadores, os malhadores, os semeadores, as ceifeiras, as apanhadeiras e vindimeiras, e que cenografam todo um mundo diferente, longe, burlesco e desconhecido, dos salões mundanos lisboetas. As sua retinas copiam o povo tal e qual como ele existe, desfiando um reportório de personagens reais e concretas, que emergem das cores e da luz que magistralmente mistura na paleta para a tela. Fá-lo-à neste canto da província, onde entre 1883 e 1933, veio a viver grande parte da sua vida criativa mas tambem intíma.
O “Casulo” era a base deste “caçador”, que calcorreava esta região à caça de motivos, do rústico, da alma gentia, ginasticando na paleta as aflorações da luz, do tempo e da natureza beirãs. Em dias de sol, Malhoa deixava o seu “Casulo” muito cedo: “Levanto-me às quatro e meia, arranjo-me, e às cinco e meia estou na rua com minha mulher: vamos para um grande maciço de carvalhos ver romper o dia, pinto, gozo, troco impressões com minha mulher. Venho almoçar, e depois pinto à sombra, na minha horta das dez à uma. Janto às duas, vou pintar até ao pôr-do-sol, e depois um grande passeio, conversar com os pastorzitos, entramos às oito e meia, e às nove…cama” (carta a Manuel Sousa Pinto em 1913). Ia por ali adiante, pelas encostas floridas e os vales profundos, em busca de motivos para instalar o cavalete, esquecendo-se das horas que passavam. Tinha o sol como relógio, tal como na faina dos campos, e regressava muitas vezes acompanhado pelos seus modelos campestres, já o sol se escondia para lá dos montes, para o “afago borralheiro do Casulo”.
Para dentro do “Casulo”, trazia os esboços e os apontamentos da força e da simplicidade das gentes do campo, com as suas alegrias, virilidades e sentimentos, que aprimorava nas telas, como companheiros do seu idílio provinciano e que pintava com a alma e com os olhos, como extensões das suas mãos.
Francisco Gabriel, modelo de Malhoa, natural da Lavandeira, dizia:“Quando vinha da escola, encontrava-o muitas vezes a pintar. E parava para estar ali a vê-lo, como faziam muitos rapazes e raparigas”.
A memória do pintor construiu-se assim, numa longa rotina ao longo de cerca de cinquenta anos, entre a sua constante presença humana e uma casa de fisionomia curiosa de cor de tijolo, numa dupla ligação que passou através das gerações, e cujo testemunho material manteve sempre vivo esse fio comunicador e cuja memória devolve o homem que a habitou, continuando a irradiar dela todos os discursos e símbolos que albergou, sobretudo quando se fala no pintor das gentes portuguesas.
casulo_actualA casa nomeia José Malhoa, delimita-o, combina-se com ele e articula-se no artista. Um e outro, mundo natural e ser humano excepcional, alimentaram-se mutuamente dentro daquele espaço edificado.
O “Casulo” de Malhoa, é um brasão patrimonial dos figueiroenses, cujo retorno ao seu convívio tem sido feito num percurso atribulado nos últimos setenta e cinco anos da sua vida, mas que se reergue sempre, teimando em repor tanto a memória, como o lugar real do pintor, da sua paleta e das superfícies das telas que ali fecundou.
O “Casulo”, foi o laboratório onde registou a história social dos campos, o traço típico do português anónimo mas genuíno, onde “reuniu” o povo Figueiroense e as paisagens desta região.
Perto das férias, em 1883, “Subia eu o Chiado e ao voltar para a então Rua de S. Francisco, hoje Rua Ivens, parei para acender um cigarro e esbarro com o colega Henrique Pinto que vinha da Academia de Belas-Artes. Expansões efusivas de camaradas, e o Pinto desafia-me a ir até Figueiró dos Vinhos, terra do nosso Mestre de desenho Simões D’Almeida (Tio), por quem fôramos várias vezes convidados. O Pintor descreveu-me a paisagem. Entusiasmado, combinei partir na companhia do amigo e colega. E…Figueiró cativou-me para o resto da vida” (Carta de Malhoa a Manuel Sousa Pinto, datada de 1913).
Em 1883 tornou-se Figueiroense de alma e coração e pintará com frequência nos seus quadros a paisagem local. Mal despontava a Primavera, entre esse ano de 1883 e o ano em que faleceu, em 1933, partia para Figueiró dos Vinhos onde se demorava até finais de Outubro, regressando a Lisboa pela época das “merendeiras”, que ele tanto apreciava. Em carta de 1913 dizia a um amigo: “Isto tudo quer dizer, que hoje faço quanto posso para estar longe dos homens…e das mulheres tambem! Trato de me afastar quanto posso da sociedade porque a conheço a fundo e sinto amargamente não poder fazer no resto dos meus dias o mesmo que agora aqui estou fazendo (em Figueiró), isto é, passar a vida entre minha mulher, a minha querida Arte, e a natureza, e…esta ainda às vezes me rala, porque quando necessito sol…chove!”.
Neste rincão provinciano passaria largas temporadas e que, nas epistolas aos amigos, confirmava serem os períodos mais felizes de toda a sua vida.
Inicialmente, guardava os seus apetrechos de pintura dentro de uma barraca de horta que pertencia ao farmacêutico da vila – Lopes Serra – e onde este recolhia os utensílios para a lavoura. Porém, Lopes Serra, homem sensível e dado às artes, pressentindo a grande fortuna memorial e o enorme prestigio que a presença do pintor podia trazer à terra, desafia-o a construir algo sólido e convidativo a permanências mais demoradas, inclusivamente, na companhia da esposa e família. Manuel Quaresma aliou-se ao gesto do conterrâneo e prestou-se a oferecer todas as madeiras necessárias para a construção da casa. José Malhoa não hesitou, e entusiasmado aceita o desafio, iniciando as obras em 1895.
Começa por construir, simplesmente, um atelier melhorado, num edifício com apenas 30.00m2 mas rodeado de luz e à volta do qual mandou plantar um grande número de hortenses (ainda existentes), que acentuavam a beleza e o colorido do local.
A “moradia” resumia-se, assim, “a uma pequeníssima casa rectangular apenas com uma divisão”, onde instalou uma “minúscula cozinha”, dividindo a sala com dois biombos, criando dois espaços e que serviam de sala de jantar/estar e quartos para ele e a sua irmã. “De tão pequeno que aquilo era, o pintor baptizou-o com o nome de «Casulo»”, porque aquele espaço representava o isolamento que ele tanto apreciava para o trabalho mais apurado, tal como o casulo é para o laborioso bicho-da-seda, e daí a razão do nome que deu ao seu atelier renovado.
Passados três anos, em 1898, decidiu ampliá-lo segundo um projecto que o arquitecto, e seu grande amigo, Ernesto Reynaud lhe propusera. Este encontrava-se em Figueiró dos Vinhos a dirigir as obras de reconstrução da Igreja Matriz. Malhoa, decide acrescentar ao atelier (o “Casulo” propriamente dito) mais um corpo com dois pisos. Sob a direcção do referido arquitecto, contrataram-se dois especialistas em construção: Júlio Soares Pinto, para a parte das alvenarias e cantarias, e Manuel Granada, perito em carpintarias. Assim, no corpo localizado a Sul ficaria o atelier, que se destinava sobretudo ao trabalho em dias chuvosos, provido com uma grande clarabóia de vidro e amplas portadas de ambos os lados que complementavam a entrada de luz natural. As paredes da sua nova sala de estar, revestiu-as a couro lavrado, com o seu próprio punho, e a ladear o tecto, colocou pequenos quadros, que incrustou em pequenos nichos, e cujos originais foram elaborados por alunos da Academia de Belas-Artes, num total de vinte e quatro pequenas telas. Esta sala era servida por uma bonita varanda alpendrada totalmente em madeira, sobranceira ao jardim onde se encontram as árvores, o lago, as sombras e as flores e, ainda, o “caramanchão das saborosas horas de repouso e lazer”. O seu quarto, no piso superior, era amplamente iluminado por três janelas, que lhe proporcionavam um panorama paisagístico incomparável: “Quando o Mestre subia ao seu quarto no 1º andar, demorava-se muitas vezes a olhar os montes, para além do Zêzere; o Cabril, a Bouçã; Cernache do Bonjardim, Lavandeira e Senhora da Confiança e a sua capelinha” (novamente o testemunho de Francisco Gabriel). No exterior do edifício, cujas paredes são rebocadas a imitar tijolo de burro, incrustaram-se valiosos painéis de azulejos de Rafael Bordalo Pinheiro, que o artista trouxe da sua terra natal. Os azulejos têm motivos curiosos estando igualmente colocados no edifício segundo um esquema temático: a rodear a área de trabalho, os motivos são geométricos, com buris policromados a formarem ilusões florais interligadas; no rés-do-chão da área habitacional, os motivos são gatos pretos, talvez em alusão à noite e aos serões acesos repartidos com os amigos; ao nível do piso superior, os motivos são rãs sob nenúfares. No sótão, cujo polígono estrutural sobressai da cobertura como uma torre, os motivos são flores de lótus e estrelas (a fazer lembrar o símbolo da energia).
Quando o “Casulo” foi inaugurado, por volta de 1905, houve “festa rija” e foi acontecimento que se prolongou durante um dia inteiro. Tal acontecimento serviu ao inspirado maestro da Filarmónica Figueiroense, que aqui vivia, a composição de uma peça musical em homenagem a esse evento – “O Casulo” – e que existe nos arquivos da nossa Filarmónica Figueiroense.
Malhoa celebrará sempre a sua ligação afectiva a Figueiró, assinando os frequentes estudos, não só com a data, mas com a identificação do Local – “Fig. Vinhos” – e tambem com apontamentos nas folhas dos pequenos álbuns de desenho que sempre trazia no bolso, transportando o nome da vila, a sua paisagem, os costumes e tradições para além dos seus limites geográficos.
Desde o longínquo primeiro quadro pintado em Figueiró em 1883 – “O Perrecho” – que a produção artística aumentara em obras telúricas figueiroenses e que viriam a granjear-lhe a fama e o reconhecimento nacional da sua obra, tais como: “Viático ao Termo”, “As Papas”, “A volta da romaria”, “As Padeiras – Mercado em Figueiró”, “Os Bêbados – Festejando o S. Martinho”, “Varanda dos Rouxinóis”, “o Imigrante”, “Ai Credo”, “Vou ser mãe”, “As Promessas”, “Conversa com o vizinho” e muitos outros.
quadro_de_jose_malhoaEm 26 de Outubro de 1933, José Malhoa falece no quarto do seu “Casulo”, vitimado por uma pneumonia. No seu atelier, sob o cavalete, permanecia uma tela que ia tomando forma. Vislumbrava-se um rosto grosseiro de uma velha camponesa, mulher do Ventura, que reflectia um rosto impregnado de sentimento humano, em que a dor e a saudade se misturam e concentram, com os olhos cansados, nariz afilado e boca descaída. Malhoa, para a pintar, contava-lhe histórias que a faziam chorar, a fim de captar as essências da sua alma, que expressassem “o desabar de uma vida que já não merecia ser vivida”. Julgo, que o próprio Malhoa, de setenta e oito anos, se revia neste retrato, de um homem que já fora um folgazão e alegre conversador, que recebera do mundo a glória, mas que no fim da etapa se encontrava isolado, solitário, “esperando da vida que a morte lhe estendesse a mão” (o seu grande amigo Henrique Pinto falecera em 1912, o irmão em 1917 e a esposa em 1919, facto que o mergulharia numa grande depressão de que só recuperaria plenamente a partir de 1926). Essa obra (a última da sua vida) ficaria para sempre inacabada e com ela terminava tambem a primeira “vida” do “Casulo”, que iniciaria um longo interregno patrimonial e que iria durar décadas.
Contarei a segunda vida do “Casulo” – e que se inscreve entre 1933 e 1982 – no próximo número deste Jornal.

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