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O «Casulo» – Capitulo III – Terceira vida (1982 – 2008)

30 Setembro 2008

casulo_alcado_nascenteNa sua terceira“vida”, o “Casulo” torna-se hospedeiro de uma Associação – o Centro Cultural de Figueiró dos Vinhos – que “acolhe” generosamente e à qual oferece todo o seu poder simbólico. Acreditou que podia reerguer-se pouco a pouco, sair definitivamente do anonimato patrimonial e voltar ao convíio das gentes Figueiroenses. Voltava a sonhar com uma nova Primavera existencial. Contudo, esta renascida Primavera Cultural, dura somente cerca de uma década e o “Casulo” voltaria a enfrentar um longo e penoso Inverno cultural e patrimonial.
centro_cultural_de_figueiro_dos_vinhosEm 27 de Fevereiro de 1982, um grupo de Figueiroenses reúne-se no Salão Nobre da Câmara Municipal “com o fim de dar vida a um velho sonho da população do concelho”: fundar um Centro Cultural na Vila de Figueiró dos Vinhos. A iniciativa congrega pessoas de todos os quadrantes. A uni-las, um grande e voluntarioso entusiasmo. Nesse mesmo dia, elegem os primeiros corpos sociais da Associação, com o orgulho e o mérito de serem os fundadores de uma causa comum: Marta Forte G.Branco, João Rodrigues, Luis Filipe Lopes, Carlos Medeiros, Fernando Lopes, António Lacerda, Fernando Santos Conceição, Manuel Alves da Piedade, Padre Manuel Ventura, Fernando G. Branco e Fernando Pires, são alguns dos nomes que estiveram na vanguarda desta iniciativa. Contudo, faltava-lhes uma sede fixa e condigna, que não obrigasse a Associação a uma vida de nomadismo, para realizarem as suas reuniões e que iam sendo feitas, ora no Salão Nobre dos Paços do Concelho, ora na sala contígua do Cartório Notarial. Na fase final, as suas reuniões tinham lugar numa sala cedida pelos Bombeiros Voluntários de Figueiró dos Vinhos. À distancia, namoravam o “Casulo”, e para o qual ambicionavam transferir a sua sede, num “noivado” que já se iniciara, discretamente, pelo menos desde Abril desse ano. Simultaneamente, a Direcção desta Associação, tomava tambem conhecimento de um projecto elaborado pelo Gabinete de Apoio Técnico e que objectivava adaptar o “Casulo” a “Centro Cultural”. Desta forma, a Edilidade Figueiroense estava tambem apostada em não repetir o erro de 1937 e, conjuntamente com o Centro Cultural, traçava uma estratégia, que incluía contactos com o proprietário do “Casulo”, a fim de adquirirem o imóvel. O projecto de recuperação-adaptação para esse edificio, para além de coincidir com os desejos do Centro Cultural, estava tambem em coerência com a classificação que o Municipio conseguira para o “Casulo”, de Imóvel de Interesse Municipal, pelo Dec. 28/82 de 26 de Fevereiro. Ajudava tambem o facto, da primeira direcção do Centro Cultural, ser constituída por um grupo de pessoas com grande prestigio nos meios Figueiroenses, facto este que terá pesado na anuência do proprietário em vender a esta Associação o imóvel e, sobretudo, porque objectivava albergar uma Associação Cultural, num espaço plenamente contextualizado para esse fim. Assim, em 29 de Junho de 1984, e pela quantia de oito milhões de escudos, o “Casulo” deixava de ser propriedade privada e passava a ser sede de uma Associação de Utilidade Pública. Quase meio século depois, o “Casulo” passava por uma nova transacção. Porém, teria de aguardar a rescisão do contrato de arrendamento com a sua última inquilina, para poder cumprir em pleno a sua nova missão, dentro do seu espaço simbólico.
A mudança do Centro Cultural de Figueiró dos Vinhos da sua antiga sede, isto é, de uma sala cedida pelos Bombeiros Voluntários, para a “Casa Malhoa”, foi feita num enquadramento algo deprimente, e que nos é revelado pela transcrição da acta da reunião da Direcção, datada de 5 de Fevereiro de 1987: “Às actividades que acabamos de expôr (e que foram muitas), devem juntar-se as seguintes acções desenvolvidas no âmbito da instalação deste Centro na sua nova sede – A Casa Malhoa.(…)Tratamento e limpeza do jardim e horta anexos à casa, os quais nos foram entregues em condições altamente degradadas e cujos trabalhos foram dispendiosos e demorados. Pequenos arranjos na instalação eléctrica, sem carácter definitivo e com o objectivo de instalar as exposições atrás referidas. Limpeza das dependências interiores com o mesmo fim. Mobilamento da Sala de reuniões, já que a casa nos foi entregue sem qualquer mobiliário à excepção da mesa e cadeiras da sala de estar, a qual possui revestimento mural a pergamóide gravado com entablamento no tecto já desprovido de quadros a óleo, mas possuindo um candeeiro do principio do século. Mobilamento da Sala da Direcção(…)”.
Em 23 de Fevereiro de 1987, na sua sede do “Casulo”, tomava posse uma renovada Direcção do Centro Cultural, que viria a ampliar e a reforçar esta nova Primavera existencial do edificio. Era composta por uma equipa jovem, que profissionalmente trabalhava no Gabinete Técnico da Câmara Municipal de Figueiró dos Vinhos: Rui Manuel Almeida e Silva, Eduardo Kol de Carvalho (arquitecto que viera de Lisboa), José Manuel Fidalgo, Maria Adelaide Leitão e Manuela Santos Alves. Dotados com formação e sensibilização patrimonial, que iam adquirindo com os trabalhos de execução do Plano de Pormenor de Salvaguarda do Centro Histórico da Vila de Figueiró dos Vinhos, e ao qual aplicavam, inclusivamente, a filosofia das Cartas Patrimoniais Intenacionais, elegeram como prioridade a reabilitação completa e cirúrgica do “Casulo” de Malhoa. O edificio seria a base donde irradiaria um ambicioso programa cultural, e que o colocaria como ponto de encontro entre a população e a Arte, a História, o Património e a Etnografia do concelho, abrindo diáriamente as suas portas e promovendo múltiplas iniciativas. Os trabalhos de recuperação foram emblemáticos e exemplares, realizados com tecnologias e materiais tradicionais, aplicando técnicas “antigas” e repondo a sua anterior tipologia. Tudo foi recuperado, desde a cave ao sotão: paredes exteriores e interiores, telhado, portas e janelas, madeiramentos, estuques, frisos, pinturas e caiações, ferragens, lago e jardim, espaços interiores, etc. Só não se procedeu às reposições arquitectónicas originais. O “Casulo” renascia!
Na verdade, entre Fevereiro de 1987 e Junho de 1993, o “Casulo” voltou a erradiar vida, cor e luz: inúmeras exposições de temática diversificada, visitas culturais guiadas, edição de um boletim cultural “O Casulo” (com 13 edições), levantamento do património concelhio, instalação de uma biblioteca com cerca de mil volumes para consulta e estudo dos sócios, apresentação e feiras de livros, etc. Estabeleceram-se contactos com entidades nacionais e estrangeiras (Secretaria de Estado da Cultura, Fundação Gulbenkian, Instituto da Juventude, Região Turismo do Centro; Brasil, Itália e Japão), promoveram-se actividades lúdicas e recreativas, realizaram-se as Festas Populares (S.Martinho, Sto. António, S. João), construiu-se um coreto e anfiteatro nos terrenos adjacentes do “Casulo”, e que inclusivamente, chegou a ser visitado pelo então Primeiro Ministro, Anibal Cavaco Silva. Promoveram-se Programas diversos: Ocupação dos Tempos Livres; Apoio ao Associativismo e Apoio aos Trabalhadores Desempregados. Um grupo de Professores de Artes Plásticas, de Lisboa e do Porto, ofereceu um conjunto de vinte paineis e que vieram a colmatar o vazio existente na sala de visitas do “Casulo”. Aquela casa voltava a ser frequentada, novamente, por um espirito “inquieto”, sonhador e profícuo. No seu apogeu, o Centro Cultural contava com cerca de 300 sócios.casulo_de_malhoa_com_claraboia_do_atelier
O grupo que esteve na base deste sucesso associativo, e que tanto se repercutiu no “Casulo, entre Fevereiro de 1987 e Junho de 1993, decide passar o “testemunho” a um novo grupo de jovens cheios de entusiasmo e convicção. Estes, herdavam uma herança demasiado pesada mas cuja essência aceitaram prosseguir e sustentar. Assim, em 11 de Junho de 1993, é eleita uma nova Direcção do Centro Cultural, e que seria a última Direcção eleita daquela Associação, e a avaliar pelo Livro de Actas da Assembleia Geral.
Na primeira fase da sua gestão directiva, a Associação ainda conseguiu levar a efeito algumas iniciativas importantes, mantendo o brilho e o fulgor do “Casulo”. Todavia, não possuo elementos concretos e que me permitam avaliar, documentalmente, o desempenho desta última Direcção, mas tão somente uma Acta (cheia de entusiasmo) lavrada no Livro de Actas da Assembleia Geral, de 29 de Dezembro de 1993, e cuja leitura nada fazia prever ou adivinhar o que se passaria lá mais para a frente no tempo, e na vida do “Casulo”, e cuja história teria um final triste e desolador. Assim, passados alguns anos, e surpreendentemente, as portas do “Casulo” voltariam a fechar, reflexo de uma óbvia desmotivação por parte do grupo associativo, que se percutia na ausência de programa orientador e de acções concretas por parte do Centro Cultural. Gradualmente, ia tomando também forma o espectro visível de uma nova degradação fíisica do “Casulo”, levando a Direcção do Centro Cultural, a candidatar-se aos fundos do PIDDAC (Programa de Investimento e Despesas de Desenvolvimento da Administração Central) constituído por valores do Orçamento do Estado, na alçada do então Ministério do Planeamento, que possibilitaria intervir na recuperação física do edifício, e cuja candidatura o Centro Cultural apresentou em 1998, tendo sido aprovada pela Direcção Geral das Autarquias Locais. Entretanto, e mais recentemente, a Direcção Geral das Autarquias Locais solicitava à Associação a devolução do adiantamento que esta recebera, acrescidos dos respectivos juros de mora, por não ter havido (até essa data) prova da aplicação da verba. Desta forma, e dado que a verba não foi devolvida, o Estado, inevitavelmente, executou a penhora do “Casulo” e dos seus terrenos anexos, para pagamento da divida. Com a execução da penhora pelo Ministério das Finanças, em Maio último, a Câmara Municipal usou do direito preferencial, que lhe assistia para o resgate do imóvel, e “salva” o “Casulo” do risco que este incorria em se transformar, novamente, numa propriedade legitimadora de poderes pessoais. O resgate deste património custou aos cofres da Câmara 160 mil Euros.
Neste momento, encontra-se em curso um plano cultural denominado “Rota de Malhoa”, e que inclui os municipios de Figueiró dos Vinhos, Caldas da Rainha, Alpiarça (Casa dos Patudos) e Lisboa, que tem o seu ponto central e unificador nas potencialidades naturalistas da região e no seu património integrado. Focaliza-o e contextualiza-o as potencialidades culturais, disponibilizadas pelo espólio fisico, material e memorial de José Vital Branco Malhoa. Que sítios e locais lhe aguçaram a inspiração, que gentes, usos, costumes e tradições subsidiaram a sua alma criadora e que vestígios testemunhais ainda é possível detectar para melhor compreendermos a extensa obra que nos deixou.
O Município prepara-se, igualmente, para fundar um Museu de Arte Naturalista, que funcionará como “Escola”de divulgação das artes e que, principalmente, acolherá e despoletará paixões para as questões do património concelhio, que urge recuperar, inventariar, classificar, monografar, mostrar e divulgar, objectivando concentrar “ todo o património histórico que está disperso por vários pontos do concelho”, dando-o a conhecer a todos.
É necessário, devolver ao “Casulo”, e de uma vez por todas, a sua dignidade e o fim para o qual foi criado, tentando reencontrar nele o quotidiano do pintor, as tradições materiais, imateriais e memoriais da casa onde viveu, e onde tambem se tornou imortal.
O futuro Museu Municipal (e cujo ivestimento rondará os 900 mil Euros), será implantado nos terrenos da horta pertencentes ao “Casulo”, possibilitando uma dinâmica umbilical ao espaço memorial dessa casa. As essências do “Casulo” e do Museu Municipal alimentar-se-ão recíprocamente, num axioma mediático comum, articulado em redor dos mesmos valores fundamentais: manter, conservar e reabilitar constantemente o património, como actos de cidadania, em reconhecimento de uma memória colectiva, que diz respeito a todos, e longe de elitismos redutores.

A lição das Vicentinas de Figueiró dos Vinhos

30 Setembro 2008

vicentinas_foto1As Conferências Vicentinas são hoje consideradas de Solidariedade Social. Tiveram o seu início nos bairros pobres de Paris, França, em 1833, fruto da acção de meia dúzia de jovens, liderados por Frederico Ozanan, com apenas vinte anos de idade, e cuja dedicação à causa se inspirava na obra e na missão caritativa de S. Vicente de Paulo, isto é, sob o influxo da justiça e da caridade, objectivando aliviar os sofrimentos aos marginalizados, mediante o trabalho coordenado de seus membros. Devido ao seu grande sucesso as Conferências rapidamente difundiram-se por toda a Europa e em 1859 já estavam vastamente implantadas em Portugal. Este movimento tem a constante preocupação em se renovar constantemente, a fim de se adaptar à dinâmica da sociedade e do mundo.

O núcleo feminino de Figueiró dos Vinhos, foi instalado em 17 de Março de 1965, precisamente há 43 anos. Tiveram como Presidentes senhoras de elevado prestigio social, tais como, Maria Alice Faria Tambá, Margarida Borges Albuquerque Calheiros Ferreira, Maria Licínia Campos Costa de Abreu, Maria do Patrocínio Tadeu, Maria Albertina Barata Simões Arinto, Prof. Manuela Pereira, sendo presididas actualmente pela Professora Celeste Dias. Prestam auxílio domiciliário, na doença, a toxicodependentes, etc, tendo tido no ano de 2007, cerca de seis mil Euros em despesas, que se traduziram na ajuda a 320 pessoas carenciadas

Contudo, o presente artigo não tem como objectivo historiar o núcleo das Vicentinas de Figueiró dos Vinhos, embora fosse importante fazê-lo, mas sim para realçar o exemplo que esta Associação deu aos seus conterrâneos no dia 14 de Setembro último, presenteando-os com um espectáculo na Casa da Cultura, que encheu completamente, para ouvir o que as Senhoras da Conferência de S. Vicente Paulo tinham para nos mostrar e dizer. Confesso que fui levado pela curiosidade, para ver como “tudo aquilo ia sair”, mais a mais, num espectáculo elaborado por um grupo sem experiência de palco e que pela primeira vez se apresentava ao público, sujeitando-se ao seu julgamento artístico. Pois bem…saí de lá “de boca aberta” (como se diz na gíria popular) e tambem com a lição bem aprendida.

E quando falo em lição aprendida, não me refiro somente à maneira magistral como contaram a epopeia da sua Associação e do Santo que as patrocina. A lição que trouxe nesse dia, de dentro da Casa da Cultura, é mais profícua e profunda. Para além de mostrarem ambição artística, as Vicentinas foram um estimulo a novas formas de contar histórias, propondo ao público o acolhimento de valores imutáveis e fundamentais e que souberam transmitir de forma renovada, num acto de verdadeira cultura, e sem elitismos culturais, muitas vezes refreadores, e que afastam a comunidade dessa relação sadia, e que se quer assim, simples e pura. Mostraram tambem uma nova fórmula para encorajar a criatividade, uma vez que provaram, que todos podem e devem participar na construção de uma certa identidade cultural, aberta a todos, e que, neste caso, de forma original, deu expressão à vida quotidiana da sua comunidade associativa. Assim, venceram em cerca de 2 horas de representação, um grande desafio, que foi provar aos actores políticos e culturais do nosso Concelho, que são parceiras fundamentais no processo de intervenção local e comunitário. Bem organizadas, coesas, com pleno espírito de entreajuda, este grupo de senhoras foi capaz de pegar num espaço e numa ideia, e que entusiasticamente souberam dinamizar. Sem serem detentoras de fórmulas especiais ou supra naturais, as Vicentinas conseguiram o Teatro, a Música, a Cenografia, os slides e a imagética, numa fórmula em que se assumiram como artistas interventoras e criadoras, resultante da sua motivação, e em coerência com a filosofia que defendem na sua Associação. Estão todas de parabéns, tanto as Senhoras que estiveram em palco, como tambem aquelas que nos bastidores preparam o espectáculo do dia 14 de Setembro de 2008.

A segunda lição que aprendi, é que, na vida comunitária, o mais importante são as pessoas, por mais obras que se ergam em cimento, alcatrão e betão. Em Figueiró dos Vinhos, o potencial humano existe, em todos os escalões e faixas etárias, mas está “imerso”, por valores que muitas vezes esquecem a valência humana, individual e colectiva. Mais importante que as engenharias e as arquitecturas, importa tambem erigir ideias, mudar mentalidades, espevitar dinamismos que frutifiquem, soltar a massa critica (e criativa) da comunidade.

O espectáculo que ofereceram, teve tal aceitação e impacto, que o irão repetir, a pedido de muita gente, em 23 de Novembro próximo.

E é assim, que este Grupo de 29 Senhoras Vicentinas, mantém uma obra voluntariosa há quase meio século em Figueiró dos Vinhos, e isso, só por si, é mais que suficiente para merecerem uma sede, ou um espaço dignificador, não para elas, mas para aqueles a quem servem todos os dias, e que esteja à altura da missão que abraçaram: servir o próximo.

O «Casulo» – Capitulo II – Segunda vida (1933 – 1982)

15 Setembro 2008

Se a primeira “vida” do “Casulo” representou o idílio dourado deste edificio, já a sua segunda “vida” representaria o inicio de uma viúvez patrimonial, desgarrada do seu pulsar simbólico, e aproveitada apenas como imagem de postal ilustrado, numa vaidade turistico-cultural bacoca e desprovida de sentido.
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Em 10 de Setembro de 1933, um mês e meio antes de falecer, José Malhoa janta na Quinta de Cima, em Chão de Couce, na casa da familia do seu grande amigo Alberto Rego, no dia em que foi inaugurado o retábulo de “Nª Srª da Consolação”. Foi o seu último grande “serão”entre amigos. No dia seguinte, já no “Casulo”, escreve uma carta endereçada à “Exma Srª D. Elvira”, e que seria a sua última missiva cheia do seu mais fino humor, onde se reflecte a alma de que era feito, e que eu não resisto a transcrever:
“O último quarto de hora do jantar delicioso, que V.Excª e o Exmo Sr. Dr. Alberto Rego me ofereceram, foi um tormento para mim! Calcule V. Excª que, quando espetava com o garfo aquela deliciosa e loirinha pele de leitão, a mesma escapou-se como uma enguia de dentro do garfo e desapareceu no meu regaço! Muito à sucapa, começo a tactear com a mão no guardanapo, e…nada! Bem (disse para comigo) está no colete ou nas calças, e lá me fica estragado o meu mais novo arranjinho!…Continuo com as minhas investigações manuais, e…nada! E então gritei cá para dentro: ai Jesus! que a pele caiu no tapete, e é nódoa certa!!…Resolvi, depois de muito matutar, aproveitar quando, terminado o jantar,(…) baixar-me, apanhar a maldita pele, e colocá-la debaixo da cadeira de V. Excª, e assim era V. Excª quem pagava as favas. Mas qual!…De repente, levantam-se todos a gritarem-me «Olha as iluminações, venha para a janela da torre, que aí vem a música e a marcha!». Corri tambem, e lá ficou a pele e a nódoa a alastrar…a alastrar! Faço ideia que a criada hoje, ao fazer a limpeza, pôs as mãos na cabeça ao ver a nódoa terrível, e o menos que terá dito é «que grande porcalhão que é o tal “pinta mônos”»! Perdôe V. Exª ao desastrado muito grato, José Malhoa.”casulo_anos_60_jose_malhoa
O Mestre, em testamento, nomeara como herdeira do “Casulo” a sua afilhada, Julieta de Almeida Pinto e Abreu, filha do seu grande amigo, o Pintor Henrique Pinto. Contudo, Julieta morre inesperadamente uns meses antes do Pintor, em 11 de Fevereiro de 1933, causando-lhe um enorme e profundo desgosto. Embora tivesse tido tempo para o fazer, Malhoa não se preocupa em alterar o seu testamento e procura continuar a sua vida da melhor forma possivel e descontraídamente e tal como o prova a carta acima transcrita. Desta forma, opta por “deixar” à Sociedade Nacional de Belas Artes o remanescente do seu património. A Sociedade, após a morte de Malhoa, toma a posse legal do “Casulo” e decide vendê-lo em hasta pública, facto que veio a consumar-se em Março de 1937.
Joaquim Alves Tomás Morgado, advogado jovem e ambicioso, residente na vila de Figueiró dos Vinhos, adquire o imóvel com o fim de o habitar mas tambem pelo prestigio que a posse do edifício lhe conferia localmente. A partir desta data o edificio viria a sofrer, gradualmente, algumas alterações na sua estrutura arquitectónica original. Afinal, havia que adaptá-lo à sua nova função de simples casa de habitação e para isso, foram-lhe infligidas intervenções que lhe alteraram a sua fisionomia memorial.O espaço do Pintor sofria a primeira desmistificação e tornava-se em pouco tempo num lugar de ficção patrimonial. A memória era arredada para a sombra, dominada por um novo estatuto dominial.
A grande clarabóia de vidro do atelier foi desmontada, assim como um telhado de duas águas que encaixava no lado nascente do mesmo. As portadas altas e magestosas de ambos os lados dessa sala, foram substituídas por janelas mais pequenas, desarticuladas do conjunto, numa imitação pouco feliz, a fim de dar corpo a uma sala de jantar. A varanda alpendrada em madeira e ferro forjado, foi desmontada e substituída por uma varanda com uma grossa laje de betão e pilares grosseiros do mesmo material. No piso superior, no lado norte, um cunhal apainelado foi totalmente substituído por alvenaria. No Rés-do-Chão, igualmente a norte, a varanda que era aberta e que se prolongava desde a varanda nascente da sala de visitas, foi transformada numa “marquise” fechada e que viria a servir, inclusivamente, durante muitos anos como escola primária privada, ministrada pela última inquilina do “Casulo”.
Em 1944, o proprietário do “Casulo”decide arrendá-lo. O edificio conheceu alguns inquilinos, tendo como última locatária uma ilustre Professora Primária, a D.ª Isabel Semedo e que o habitou durante muitos anos.
Assim e durante quase meio século, a memória histórica daquela casa permaneceu enclausurada e assumiu funções, que o fizeram cair num sono profundo, num estatuto de domínio senhorial e que lhe provocou um coma patrimonial. Só os mais ilustres, familiares, conhecidos e amigos dos locatários, continuarão a usufruir do privilégio de pasmarem perante a exuberância da sala de visitas do Pintor e do espaço que este habitara e que era mostrado, reverenciado e apreciado em privado, como se de um museu particular se tratasse.
Pergunto: porque não acautelou José Malhoa o futuro do seu “Casulo” em favor da edilidade Figueiroense, destinando-o, por exemplo, para uma futura casa-museu, num gesto largo de gratidão pela dádiva que colheu no seu “Figueiró-das-Côres”, que tanto percutiu e potenciou a sua glória como pintor exímio e que lhe garantiu um lugar na história das artes nacionais???
Penso que a resposta a essa questão se deve a cinco motivos:
1- Malhoa nunca deixara de ser um homem simples, apesar dos muitos prémios e homenagens que recebeu, sobretudo na última década da sua vida. A convivência campestre ampliara, de alguma forma, a natureza dessa essência.
É certo que acautelara a sua propriedade de Figueiró, testamentando-a em favor da sua afilhada mas esta, inesperadamente, morre antes dele. Todavia, nunca se preocupou nos meses seguintes em alterar o seu testamento, nomeando outro herdeiro. E isto é um facto!
2- Em 1933, ano da sua morte, o mito nacional de José Malhoa já estava plenamente instituído e para o qual muito contribuiu a reaproximação que o Pintor iniciara à sua terra natal (Caldas da Rainha) a partir de 1926, pela mão de um Caldense dinâmico: António Montês. Este, lançara a ideia de fundar um museu de arte nas Caldas da Rainha com o nome do Artista, reunindo uma comissão denominada “Liga dos amigos do Museu José Malhoa”. Entusiasmado com a ideia museológica, o Pintor faz em 1932 uma importante e valiosa doação de obras de arte, que incluía artistas como Joaquim Prieto, Columbano, Lourdes de Mello Castro e também obras suas, que viriam a ser as primeiras da colecção do seu Museu, o qual obteria o parecer favorável do Conselho Superior de Belas Artes. Deste modo, em 9 de Maio de 1933, é criado, embora em instalações provisórias, o Museu de José Malhoa nas Caldas da Rainha. O pintor vê assim consagrada, ainda em vida e definitivamente, a sua obra, ao mesmo tempo que via tambem assegurada a futura vitalidade da sua memória. Seria nas Caldas da Rainha e não em Figueiró dos Vinhos, que se centraria e integraria a materialidade do seu esplendor artístico e cujas bases sólidas eram sancionadas e apoiadas pelo Estado Português. A sua terra natal entendera o seu valor patrimonial e memorial, bem como a fortuna que tal representava para as gerações futuras.
Figueiró dos Vinhos não passava de um terra de grupos e familias rivais, demasiado “pequena”, como uma terriola onde se colecionavam favores e “dotes”, de caciquismos sistemáticos e de lealdades forçadas por nomes poderosos e abastados, com a politica à mistura e que, consequentemente, condicionava o futuro e a maturidade da vila e do concelho (basta ler os jornais da época). Pergunto-me, se Malhoa não sentiria tudo isto (“Trato de me afastar quanto posso da sociedade porque a conheço a fundo”) e se porventura teria fé em acções inovadoras e progressistas por parte dos figueiroenses que ele representava nas telas!? Acho que permaneceu e viveu aqui, tão-somente, pelo vício inspirador que a ambiência rural e paisagistica lhe facultavam, permitindo-lhe um extenso campo fértil de temas e que transferira para as suas obras mais consagradas. Nunca os Figueiroense teriam capacidade para se unir e constituir em comissão, numa iniciativa idêntica à das gentes Caldenses. Além disso, também não lhe interessava fragmentar a sua memória futura em dois pólos rivais e concorrenciais. Mais a mais, a figura de “Casa-Museu” ainda não estava consagrada na época, bem como a questão dos valores patrimoniais, que não tinham a importância tal como hoje os conhecemos.
3 – Todos os seus entes queridos tinham já falecido. O essencial da sua herança estava assegurado solidamente, tanto nas Caldas da Rainha como em Lisboa. Preocupar-se com o destino do “Casulo” era uma questão secundária e que exigia o dispêndio de energias que já não tinha. Alem disso, não deveria querer que o edifício afastasse os amigos de longa data, por temer a concorrência entre eles, em despeito da doação do mesmo.
4- O Programa Cultural do Estado Novo nunca aprovaria outro pólo museológico dedicado a Malhoa, tendo em consideração a robustez do Museu das Caldas, esse sim, devidamente institucionalizado e sufragado tanto pelo Regime, como pelo próprio Artista. Figueiró dos Vinhos tinha um cunho demasiado provinciano e saloio, que nunca entendeu a essência da filosofia patrimonial, por mais homens importantes, que localmente e eventualmente a pudessem sustentar. Para mais, a vila estava longe de ter as acessibilidades desejadas aos grandes centros urbanos do país.
5- Finalmente referir que para o Estado Novo o património consagrado era o “artístico e o arqueológico”. Dava-se sobretudo valor à instituição museológica e que se dividia em três grupos basilares: museus nacionais, museus regionais e museus municipais mas que oferecessem “tesouros de arte sacra e outras mais colecções (que) oferecessem valor artístico, histórico e arqueológico”( Capitulo V do Decreto de 1932).
O “Casulo” de José Malhoa estava, deste modo, alguns degraus abaixo desta hirarquia de valores e nunca obteria o estatuto de prioridade patrimonial a preservar e, sobretudo, porque não existia oficialmente como imóvel de interesse público sustentado e classificado. Conclusão: a Sociedade Nacional de Belas Artes, não teve outra alternativa senão desfazer-se de um peso que não podia manter e cuja rentabilização patrimonial era complicada, decidindo vendê-lo em praça pública. O Estado, inconscientemente, vandalizava oficialmente. Contudo e paradoxalmente, vejo-me obrigado a reconhecer, que Joaquim Alves Tomás Morgado, ao adquirir o “Casulo” em 1937, evitara que o edificio fosse adquirido por alguem de fora do concelho, ou por algum grupo que o tivesse transformado, irremediávelmente, em qualquer coisa bizarra ou, pior ainda, …por alguem que o tivesse demolido ou transfigurado profundamente. De referir, que a única voz que se ouviu apelando “à Nação” que adquirisse o “Casulo”, para fins públicos, foi a do Dr. Fernando de Lacerda, num discurso que proferiu na sede da Casa da Comarca de Figueiró dos Vinhos, em 06 de Abril de 1955 “para lá instalar uma pousada para estudantes de Belas-Artes”. Contudo, tal apelo não frutificou!
dona_julieta_pinto_abreu_por_jose_malhoaO “Casulo”continuaria à espera, pacientemente, pela hora em que emergiria da sua longa letargia. E será em 1982 que sentirá um laivo de esperança, quando pressente a coragem, a ousadia e a criatividade de um grupo de Figueiroenses, que em Fevereiro desse ano tem a iniciativa de fundar um Centro Cultural em Figueiró dos Vinhos. Uma Associação ousada tomava corpo e começaria a namorar o “Casulo”, ansiando instalar nele a sua sede. Nesse mesmo ano, a Câmara Municipal conseguia tambem a sua classificação como Imóvel de Interesse Municipal, pelo Dec.Lei 28/82.
Parecia assim, que o ano de 1982 prometia iniciar uma nova vida ao chalet de Malhoa, tirando-o do “esconderijo” onde este permanecera quase cinquenta anos, devolvendo-lhe a sua identidade genuína, que ansiava por escrever uma nova página no livro das suas memórias, há muito interrompidas e adormecidas.
No próximo número deste jornal contarei a 3ª “vida” do “Casulo”, que decorre entre 1982 e a actualidade.