O «Casulo» – Capitulo II – Segunda vida (1933 – 1982)

Setembro 15th, 2008

Se a primeira “vida” do “Casulo” representou o idílio dourado deste edificio, já a sua segunda “vida” representaria o inicio de uma viúvez patrimonial, desgarrada do seu pulsar simbólico, e aproveitada apenas como imagem de postal ilustrado, numa vaidade turistico-cultural bacoca e desprovida de sentido.
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Em 10 de Setembro de 1933, um mês e meio antes de falecer, José Malhoa janta na Quinta de Cima, em Chão de Couce, na casa da familia do seu grande amigo Alberto Rego, no dia em que foi inaugurado o retábulo de “Nª Srª da Consolação”. Foi o seu último grande “serão”entre amigos. No dia seguinte, já no “Casulo”, escreve uma carta endereçada à “Exma Srª D. Elvira”, e que seria a sua última missiva cheia do seu mais fino humor, onde se reflecte a alma de que era feito, e que eu não resisto a transcrever:
“O último quarto de hora do jantar delicioso, que V.Excª e o Exmo Sr. Dr. Alberto Rego me ofereceram, foi um tormento para mim! Calcule V. Excª que, quando espetava com o garfo aquela deliciosa e loirinha pele de leitão, a mesma escapou-se como uma enguia de dentro do garfo e desapareceu no meu regaço! Muito à sucapa, começo a tactear com a mão no guardanapo, e…nada! Bem (disse para comigo) está no colete ou nas calças, e lá me fica estragado o meu mais novo arranjinho!…Continuo com as minhas investigações manuais, e…nada! E então gritei cá para dentro: ai Jesus! que a pele caiu no tapete, e é nódoa certa!!…Resolvi, depois de muito matutar, aproveitar quando, terminado o jantar,(…) baixar-me, apanhar a maldita pele, e colocá-la debaixo da cadeira de V. Excª, e assim era V. Excª quem pagava as favas. Mas qual!…De repente, levantam-se todos a gritarem-me «Olha as iluminações, venha para a janela da torre, que aí vem a música e a marcha!». Corri tambem, e lá ficou a pele e a nódoa a alastrar…a alastrar! Faço ideia que a criada hoje, ao fazer a limpeza, pôs as mãos na cabeça ao ver a nódoa terrível, e o menos que terá dito é «que grande porcalhão que é o tal “pinta mônos”»! Perdôe V. Exª ao desastrado muito grato, José Malhoa.”casulo_anos_60_jose_malhoa
O Mestre, em testamento, nomeara como herdeira do “Casulo” a sua afilhada, Julieta de Almeida Pinto e Abreu, filha do seu grande amigo, o Pintor Henrique Pinto. Contudo, Julieta morre inesperadamente uns meses antes do Pintor, em 11 de Fevereiro de 1933, causando-lhe um enorme e profundo desgosto. Embora tivesse tido tempo para o fazer, Malhoa não se preocupa em alterar o seu testamento e procura continuar a sua vida da melhor forma possivel e descontraídamente e tal como o prova a carta acima transcrita. Desta forma, opta por “deixar” à Sociedade Nacional de Belas Artes o remanescente do seu património. A Sociedade, após a morte de Malhoa, toma a posse legal do “Casulo” e decide vendê-lo em hasta pública, facto que veio a consumar-se em Março de 1937.
Joaquim Alves Tomás Morgado, advogado jovem e ambicioso, residente na vila de Figueiró dos Vinhos, adquire o imóvel com o fim de o habitar mas tambem pelo prestigio que a posse do edifício lhe conferia localmente. A partir desta data o edificio viria a sofrer, gradualmente, algumas alterações na sua estrutura arquitectónica original. Afinal, havia que adaptá-lo à sua nova função de simples casa de habitação e para isso, foram-lhe infligidas intervenções que lhe alteraram a sua fisionomia memorial.O espaço do Pintor sofria a primeira desmistificação e tornava-se em pouco tempo num lugar de ficção patrimonial. A memória era arredada para a sombra, dominada por um novo estatuto dominial.
A grande clarabóia de vidro do atelier foi desmontada, assim como um telhado de duas águas que encaixava no lado nascente do mesmo. As portadas altas e magestosas de ambos os lados dessa sala, foram substituídas por janelas mais pequenas, desarticuladas do conjunto, numa imitação pouco feliz, a fim de dar corpo a uma sala de jantar. A varanda alpendrada em madeira e ferro forjado, foi desmontada e substituída por uma varanda com uma grossa laje de betão e pilares grosseiros do mesmo material. No piso superior, no lado norte, um cunhal apainelado foi totalmente substituído por alvenaria. No Rés-do-Chão, igualmente a norte, a varanda que era aberta e que se prolongava desde a varanda nascente da sala de visitas, foi transformada numa “marquise” fechada e que viria a servir, inclusivamente, durante muitos anos como escola primária privada, ministrada pela última inquilina do “Casulo”.
Em 1944, o proprietário do “Casulo”decide arrendá-lo. O edificio conheceu alguns inquilinos, tendo como última locatária uma ilustre Professora Primária, a D.ª Isabel Semedo e que o habitou durante muitos anos.
Assim e durante quase meio século, a memória histórica daquela casa permaneceu enclausurada e assumiu funções, que o fizeram cair num sono profundo, num estatuto de domínio senhorial e que lhe provocou um coma patrimonial. Só os mais ilustres, familiares, conhecidos e amigos dos locatários, continuarão a usufruir do privilégio de pasmarem perante a exuberância da sala de visitas do Pintor e do espaço que este habitara e que era mostrado, reverenciado e apreciado em privado, como se de um museu particular se tratasse.
Pergunto: porque não acautelou José Malhoa o futuro do seu “Casulo” em favor da edilidade Figueiroense, destinando-o, por exemplo, para uma futura casa-museu, num gesto largo de gratidão pela dádiva que colheu no seu “Figueiró-das-Côres”, que tanto percutiu e potenciou a sua glória como pintor exímio e que lhe garantiu um lugar na história das artes nacionais???
Penso que a resposta a essa questão se deve a cinco motivos:
1- Malhoa nunca deixara de ser um homem simples, apesar dos muitos prémios e homenagens que recebeu, sobretudo na última década da sua vida. A convivência campestre ampliara, de alguma forma, a natureza dessa essência.
É certo que acautelara a sua propriedade de Figueiró, testamentando-a em favor da sua afilhada mas esta, inesperadamente, morre antes dele. Todavia, nunca se preocupou nos meses seguintes em alterar o seu testamento, nomeando outro herdeiro. E isto é um facto!
2- Em 1933, ano da sua morte, o mito nacional de José Malhoa já estava plenamente instituído e para o qual muito contribuiu a reaproximação que o Pintor iniciara à sua terra natal (Caldas da Rainha) a partir de 1926, pela mão de um Caldense dinâmico: António Montês. Este, lançara a ideia de fundar um museu de arte nas Caldas da Rainha com o nome do Artista, reunindo uma comissão denominada “Liga dos amigos do Museu José Malhoa”. Entusiasmado com a ideia museológica, o Pintor faz em 1932 uma importante e valiosa doação de obras de arte, que incluía artistas como Joaquim Prieto, Columbano, Lourdes de Mello Castro e também obras suas, que viriam a ser as primeiras da colecção do seu Museu, o qual obteria o parecer favorável do Conselho Superior de Belas Artes. Deste modo, em 9 de Maio de 1933, é criado, embora em instalações provisórias, o Museu de José Malhoa nas Caldas da Rainha. O pintor vê assim consagrada, ainda em vida e definitivamente, a sua obra, ao mesmo tempo que via tambem assegurada a futura vitalidade da sua memória. Seria nas Caldas da Rainha e não em Figueiró dos Vinhos, que se centraria e integraria a materialidade do seu esplendor artístico e cujas bases sólidas eram sancionadas e apoiadas pelo Estado Português. A sua terra natal entendera o seu valor patrimonial e memorial, bem como a fortuna que tal representava para as gerações futuras.
Figueiró dos Vinhos não passava de um terra de grupos e familias rivais, demasiado “pequena”, como uma terriola onde se colecionavam favores e “dotes”, de caciquismos sistemáticos e de lealdades forçadas por nomes poderosos e abastados, com a politica à mistura e que, consequentemente, condicionava o futuro e a maturidade da vila e do concelho (basta ler os jornais da época). Pergunto-me, se Malhoa não sentiria tudo isto (“Trato de me afastar quanto posso da sociedade porque a conheço a fundo”) e se porventura teria fé em acções inovadoras e progressistas por parte dos figueiroenses que ele representava nas telas!? Acho que permaneceu e viveu aqui, tão-somente, pelo vício inspirador que a ambiência rural e paisagistica lhe facultavam, permitindo-lhe um extenso campo fértil de temas e que transferira para as suas obras mais consagradas. Nunca os Figueiroense teriam capacidade para se unir e constituir em comissão, numa iniciativa idêntica à das gentes Caldenses. Além disso, também não lhe interessava fragmentar a sua memória futura em dois pólos rivais e concorrenciais. Mais a mais, a figura de “Casa-Museu” ainda não estava consagrada na época, bem como a questão dos valores patrimoniais, que não tinham a importância tal como hoje os conhecemos.
3 – Todos os seus entes queridos tinham já falecido. O essencial da sua herança estava assegurado solidamente, tanto nas Caldas da Rainha como em Lisboa. Preocupar-se com o destino do “Casulo” era uma questão secundária e que exigia o dispêndio de energias que já não tinha. Alem disso, não deveria querer que o edifício afastasse os amigos de longa data, por temer a concorrência entre eles, em despeito da doação do mesmo.
4- O Programa Cultural do Estado Novo nunca aprovaria outro pólo museológico dedicado a Malhoa, tendo em consideração a robustez do Museu das Caldas, esse sim, devidamente institucionalizado e sufragado tanto pelo Regime, como pelo próprio Artista. Figueiró dos Vinhos tinha um cunho demasiado provinciano e saloio, que nunca entendeu a essência da filosofia patrimonial, por mais homens importantes, que localmente e eventualmente a pudessem sustentar. Para mais, a vila estava longe de ter as acessibilidades desejadas aos grandes centros urbanos do país.
5- Finalmente referir que para o Estado Novo o património consagrado era o “artístico e o arqueológico”. Dava-se sobretudo valor à instituição museológica e que se dividia em três grupos basilares: museus nacionais, museus regionais e museus municipais mas que oferecessem “tesouros de arte sacra e outras mais colecções (que) oferecessem valor artístico, histórico e arqueológico”( Capitulo V do Decreto de 1932).
O “Casulo” de José Malhoa estava, deste modo, alguns degraus abaixo desta hirarquia de valores e nunca obteria o estatuto de prioridade patrimonial a preservar e, sobretudo, porque não existia oficialmente como imóvel de interesse público sustentado e classificado. Conclusão: a Sociedade Nacional de Belas Artes, não teve outra alternativa senão desfazer-se de um peso que não podia manter e cuja rentabilização patrimonial era complicada, decidindo vendê-lo em praça pública. O Estado, inconscientemente, vandalizava oficialmente. Contudo e paradoxalmente, vejo-me obrigado a reconhecer, que Joaquim Alves Tomás Morgado, ao adquirir o “Casulo” em 1937, evitara que o edificio fosse adquirido por alguem de fora do concelho, ou por algum grupo que o tivesse transformado, irremediávelmente, em qualquer coisa bizarra ou, pior ainda, …por alguem que o tivesse demolido ou transfigurado profundamente. De referir, que a única voz que se ouviu apelando “à Nação” que adquirisse o “Casulo”, para fins públicos, foi a do Dr. Fernando de Lacerda, num discurso que proferiu na sede da Casa da Comarca de Figueiró dos Vinhos, em 06 de Abril de 1955 “para lá instalar uma pousada para estudantes de Belas-Artes”. Contudo, tal apelo não frutificou!
dona_julieta_pinto_abreu_por_jose_malhoaO “Casulo”continuaria à espera, pacientemente, pela hora em que emergiria da sua longa letargia. E será em 1982 que sentirá um laivo de esperança, quando pressente a coragem, a ousadia e a criatividade de um grupo de Figueiroenses, que em Fevereiro desse ano tem a iniciativa de fundar um Centro Cultural em Figueiró dos Vinhos. Uma Associação ousada tomava corpo e começaria a namorar o “Casulo”, ansiando instalar nele a sua sede. Nesse mesmo ano, a Câmara Municipal conseguia tambem a sua classificação como Imóvel de Interesse Municipal, pelo Dec.Lei 28/82.
Parecia assim, que o ano de 1982 prometia iniciar uma nova vida ao chalet de Malhoa, tirando-o do “esconderijo” onde este permanecera quase cinquenta anos, devolvendo-lhe a sua identidade genuína, que ansiava por escrever uma nova página no livro das suas memórias, há muito interrompidas e adormecidas.
No próximo número deste jornal contarei a 3ª “vida” do “Casulo”, que decorre entre 1982 e a actualidade.

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