Foi há 50 anos que o inferno passou pelo Vale do Rio – Parte II

Dezembro 5th, 2011


Os anos 60 inaugurariam o flagelo sazonal dos incêndios florestais na região, em linha com o êxodo da população serrana e o abandono da actividade humana em torno da floresta, intimamente ligada à actividade agrícola, que deixaria os pinhais e eucaliptais à mercê de matos e plantas arbustivas, “em virtude de na sua quase totalidade haver substituído a adubação orgânica pela adubação química”. As florestas deixaram de ser limpas, porque os matos não eram roçados para serem utilizados como fertilizantes na lavoura, e a lenha deixou de ser utilizada como fonte de energia, substituída pelo gás butano. Tanto as transformações sociais verificadas, como a alteração de hábitos e costumes das populações, vieram alterar profundamente o relacionamento entre as comunidades e a floresta, outrora intimo, equilibrado e interligado.
Um curioso reparo era também publicado no jornal «A Regeneração» em 15 de Agosto de 1961, aludindo à exaustiva tarefa dos Bombeiros, à sua heróica e abnegada actividade, “tantas vezes ameaçados até pela sede”. Chamava-se igualmente “a atenção dos incendiários, normalmente involuntários, mas quase sempre descuidados”.
No final do mês de Agosto de 1961, conjugado com as altas temperaturas que se faziam sentir na região, todos estes factores, e que tinham sido subsidiários dos últimos incêndios, iriam ser tragicamente confirmados no violentíssimo sinistro que consumiria as povoações de Casalinho e de Vale do Rio.
Nesse dia 28 de Agosto, o tal drama bem mais profundo e que se desenvolvia lá para “as bandas do rio”, a sul da freguesia figueiroense, tivera início junto da Capela de Santa Madalena, limites de Cernache do Bonjardim, originando um incêndio que iria ficar nos anais da história do concelho de Figueiró dos Vinhos e dos seus Bombeiros Voluntários.
Às 16 horas desse dia esse sinistro de enormes proporções atingia e transpunha o Rio Zêzere com a maior das facilidades, impulsionado pela força dos ventos “que mais pareciam labaredas incolores, tal era a temperatura que transportavam”, continuando a sua marcha destruidora em todas as direcções. Conjugado com o incêndio que rebentara nas imediações da serra de S. Neutel, ameaçou a vila de Figueiró dos Vinhos e as povoações de Várzea, Bairradas, Salgueiro, Douro, Chavelho, Fontainhas, Coutada, Enchecamas, Cabeças, Laranjeira, Carapinhal (as chamas chegaram ao edifício escolar, contíguo à povoação), Chãos, etc. Chegaram a estar em perigo 14 povoações do concelho figueiroense.
Este incêndio gigantesco chegou a desenvolver-se numa frente de cerca de 15 quilómetros, estendendo-se desde as Atalaias (freguesia da Graça e concelho de Pedrógão Grande), até às imediações da freguesia de Arega (concelho de Figueiró dos Vinhos). O combate ao incêndio “foi inicialmente feito pelos Bombeiros Voluntários desta Vila e por muitas centenas de populares; depois, a solicitação do Município e através da preciosa intervenção do Senhor Governador Civil e da própria Emissora Nacional, acorreram a Figueiró dos Vinhos 14 Corporações desta região”.
Este drama originou também um grave problema social, até aí inédito no concelho figueiroense e que marcou as preocupações da edilidade municipal: a reinstalação de dezenas de famílias que tinham perdido todos os seus bens e haveres. De facto, ao final da tarde do dia 28 começaram a chegar à vila grupos de refugiados vindos do Vale do Rio, Casalinho e Salgueiro, que atravessando pinhais e serras a corta-mato, fugiram ao inferno que lhes devorara as casas e uma vida de trabalho. O salão nobre da Câmara Municipal serviu-lhes de alojamento provisório, que rapidamente se transformou em refeitório e dormitório. Algumas casas particulares da vila e dos subúrbios albergaram muitas crianças e adultos. Mas foi no antigo hospital da Misericórdia (Convento do Carmo) que se acolheram dezenas destas famílias, que aí permaneceram durante muito tempo. Apelou-se à solidariedade da população que mobilizou colchões, cobertores, agasalhos e alimentos.
Esse Agosto de 1961 ficaria registado na memória colectiva dos figueiroenses desta forma trágica, por esse inferno florestal que destruiu povoações inteiras, entre os dias 28 e 29, por um flagelo de lume que se iniciara no concelho vizinho da Sertã e que alastrara rapidamente até se propagar extensivamente ao concelho de Figueiró dos Vinhos, ramificando-se e ateando simultaneamente vários focos de incêndio. “Em face da gravidade da situação, e reconhecendo a impotência da Corporação para sozinha atacar tantos e tão distanciados focos de incêndio, o Senhor Comandante, avistou-se com o Senhor Presidente da Câmara e de pronto deliberaram requisitar todas as Corporações da região disponíveis e unidades do exército, o que logo se fez, com o auxilio do Excelentíssimo Governador Civil.”A povoação do Vale do Rio tinha como acesso viário uma estrada que, à época, era intransitável a veículos automóveis. O trajecto era feito por quelhões e caminhos de carroças, através da serra do Douro, por entre penedos soltos e mato. A alternativa era uma espécie de atalho em desfiladeiro que ligava a capela do Bom Jesus ao Douro, desembocando no Salgueiro, por caminhos igualmente difíceis e tortuosos.
José Lima, ex-comandante dos Bombeiros e à época Bombeiro de 1ª Classe, recorda o trajecto feito com o Buick da corporação, pela serra do Douro “com o depósito cheio de gasolina rente ao chão queimado, que nos fez perder muito tempo. Quando chegámos ao Vale do Rio já a povoação tinha ardido!”Outro antigo Bombeiro, Leonel de Jesus Simões, recorda deste incêndio “as chamas com uma altura doida e a carne a arder dentro das salgadeiras e dos potes de azeite, que exalavam um cheiro a carne assada, misturado com o fumo do incêndio”. Recorda também o corpo de um homem carbonizado, que “encontrámos na serra, perto da Água D’Alta, caído de bruços, com um sacho ao lado e apenas com a fita do chapéu na cabeça, o cinto das calças e as botas. É uma imagem que recordarei até morrer!”Outro camarada destes dois Bombeiros, Fernando Rosalino, recordou as viagens que o Buick fez para transportar alimentos para os que haviam ficado no Vale do Rio.
Em 1961 o comandante dos Bombeiros de Figueiró dos Vinhos era Manuel Pereira da Silva Roda e a corporação tinha acabado de se instalar num pátio, localizado à entrada da Rua Teófilo Braga, cedido pela Câmara Municipal à Associação Humanitária. A corporação era composta por cerca de duas dezenas de Bombeiros e possuía 2 veículos motorizados: um velho Buick, que tinha sido oferecido aos Bombeiros por Ivo Lacerda, em Maio de 1957, adaptado a carro de bombeiros na «Oficina Barreiros» e o pronto-socorro Bedford, cujo chassis chegara à vila em Maio de 1959, montado também na mesma oficina e que entrara ao serviço da corporação em Dezembro desse ano. A direcção da Associação dos Bombeiros era presidida por Luis Henrique Quaresma Ferreira, coadjuvado por Henrique Vaz Lacerda (vice-presidente), António Simões de Sousa (secretário) e José da Conceição Barreiros (tesoureiro).
Contudo e apesar de todos os esforços, “quando os Bombeiros chegaram (ao Vale do Rio) já era tarde porque não havia estrada e só veículos de tracção às quatro rodas, que a Corporação não tinha, conseguiriam lá chegar”. As casas da povoação tinham começado a arder quase simultaneamente. “Era um espectáculo arrepiante e dantesco: aos uivos das labaredas; aos ruídos matraqueados dos desmoronamentos de telhados e paredes; ao crepitar das madeiras incandescentes; ao rechinar das carnes e gritos aflitivos dos animais domésticos, juntavam-se os clamores zenitantes da dor dos habitantes que, imponentes para dominar o monstro, foram testemunhas passivas e dolorosas da destruição dos seus lares e haveres”.
Foi por volta das 18 horas do dia 28 que este incêndio ameaçou a própria vila de Figueiró dos Vinhos, que esteve na eminência de ser também devorada. Os esforços denodados dos Bombeiros aliados aos dos populares foram imensos, até que “uma brusca e milagrosa viragem de vento salvou a vila, quando o fogo se encontrava ao Barreiro, no extremo poente da vila”. Nessa altura começaram a chegar outras corporações e as unidades militares de Leiria e de Monte Real, que entraram em acção sob a orientação do Comandante Roda, que organizou o ataque ao sinistro, que se manteve activo até à madrugada do dia 29 “com carácter permanente”, mantendo-se em actividade por mais dois dias, obrigando a uma vigília constante e permanente, “acorrendo as brigadas a vários sectores onde o incêndio a todo o momento se reatava”, até que na manhã do dia 30 foi considerado completamente debelado.

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