O Natal de outrora nas aldeias rurais: Casal de S. Simão e Ferraria de S. João

Dezembro 23rd, 2009

aldeiasAlpendoradas ou estendidas sobre as encostas, as nossas aldeias serranas beirãs celebravam a véspera de natal de forma comedida e simples, reunindo a familia em volta da lareira, na noite em que nascia o “Deus Menino”. Dos telhados do casario e das chaminés revestidas a xisto, elevava-se o fumo do madeiro que aquecia a consoada, diluindo-se no firmamento da noite orvalhada ou por entre a floresta que orlava a aldeia. Os campos agrícolas, nesta época do ano, encontravam-se em poisio; as sementes esperavam nas arcas para um novo ciclo de fecundação, e neste meio-tempo, os aldeões usufruíam de um descanso forçado mas compensador, junto do fumeiro e do borralho da lareira.
Pelo entardecer, a aldeia prepara-se para receber a noite especial, numa atmosfera serena que envolve o casario, em recolhimento familiar, apenas quebrado pelo chiar das rodas da última carroça carregada com pasto verde destinado ao curral, onde se cria o porco, a cabra e a ovelha. O “Broas” foi o ultimo a sair das hortas. Teimou em dar a volta à courela, a ver muros e parreiras antes de subir à aldeia com o molhe de ervas para dar aos animais, sim, porque isto de ser natal, não dá descanso à labuta da familia, e as pobres criaturas também são filhas de Deus. Já cai a noite sobre a aldeia de pedra quando as mulheres se preparam para fritar as “filhós”, destapando um alguidar cuidadosamente abafado com uma manta, que contém a massa que levedou toda a tarde. Na noite de natal, a cozinha humilde do aldeão torna-se o centro do mundo, onde a familia se prepara para cumprir a tradição gastronómica da região, e que ainda hoje se mantém, cozendo a pratalhada de bacalhau com batatas e couves, tudo bem regado com o azeite novo, manjar que era acompanhado com a única guloseima da noite, as “filhós”, e que recheavam a casa com o seu aroma frito-doce. Não havia troca de presentes ou coisa que se assemelhasse. Havia sim, as preces ao menino que nascia nessa noite fria e que se afagavam no seio da familia, sussurrando a Deus para que a vida continuasse e se concretizasse em pleno.
Na aldeia, a noite e o dia de Natal eram consagrados à renovação de um novo ciclo de esperança em torno da familia, da casa e do calor do lar humilde, simbolizado pelo braseiro que emanava da lareira e que unia os elementos naturais e espirituais, exorcizando os infortúnios da parentela comunitária. Os restos que sobravam do grande madeiro, que ardera toda a noite, eram recolhidos e guardados como relíquias naturalmente abençoadas, para serem utilizadas durante o ano novo que se avizinhava, para quando as cabras não pariam ou para acalmar a ira dos céus em dias de forte trovoada.
Ao contrário do Natal, não se ligava ao “fim-de-ano”, que era considerado um dia normal para a comunidade aldeã. Excepção feita ao S. Martinho, muito ligado à prova do vinho novo, num ritual que era apanágio de todas as casas, que deviam ter uma adega bem fornecida, símbolo económico-social da aldeia e do valor do trabalho das suas gentes.
Ao contrário dos nossos tempos, o natal nestas aldeias, entre as décadas de 30 e 60 do século passado, não era motivo para mesas fartas, troca de presentes e outros excessos consumistas. Não havia árvore de natal, nem presépio ao canto da sala, nem prendas prometidas pelo pai natal, nem bolo-rei a emoldurar a mesa do camponês. A aldeia não tinha as ruas iluminadas, nem enfeites natalícios pendurados nas portas das casas. O natal era natural na sua simplicidade e genuíno na sua consagração. O único “luxo” era o tradicional bacalhau com batatas, cozido à lareira com a fé em brasa, numa grande panela de ferro enegrecida, e as deliciosas “filhós”, polvilhadas de açúcar e que faziam os petizes lamber as pontas dos dedos. Nesse dia, os aldeões cumpriam também outra tradição, restringindo as suas refeições apenas a duas – comendo só de manhã e à noite – sugestionados por um ditado popular, que regia um costume antigo e que se esforçavam por respeitar, nem que fosse pela filosofia vernácula que pendia sobre os prevaricadores: “quem come carne na véspera de natal ou é burro ou é animal!”

5 Respostas a “O Natal de outrora nas aldeias rurais: Casal de S. Simão e Ferraria de S. João”

  1. Rodrigo diz:

    Lindíssimo texto sobre um tempo esquecido, que os mais novos não conheceram.
    Felizmente, eu sou desse tempo, em que o mais pequeno dos presentes tinha o tamanho do mundo.
    As conversas à lareira, nessas noites com a família reunida, ficaram nas minhas memórias como o mais puro dos tesouros.
    Obrigado pela viagem a um tempo tão sereno!

  2. Parabens pelo excelente trabalho de pesquisa das “Crónicas dum tempo”. Trabalho importante para dar a conhecer histórias de outro tempo.

  3. Cláudio diz:

    A comunhão que recusamos espera por nós. Um testemunho do que pode ser saber viver e equilibrar a euforia de pensar e a dor de pensar.

    Passemos o testemunho que é possível vivê-la.

  4. Manuel Santos Troca diz:

    Boas Festas! Os tempos são outros. Conservemos o espírito.

  5. Carlos Silva diz:

    Caro Amigo Tó-Zé! Parabéns pelo excelente trabalho, um esforço digno de registo, ao lermos esta crónica, recuamos no tempo e relembramos tempos passados. Boas Festa e Feliz Ano 2010.

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