Um poeta que canta um povo («A Epopeia Maubere»)

Maio 10th, 2012

(Apresentação do livro de Alcides Martins, que tive a honra de levar a efeito na Universidade Sénior de Figueiró dos Vinhos)

De onde vem e como se define a identidade de um povo? Sobretudo, de um povo de existência “obscura”, perdido nos confins do sudeste asiático, no meio de uma miríade de ilhéus, que forma a península da “Insulindia”.
Que povo é este, até há pouco tempo anónimo, desconhecido, sufocado por uma nação poderosa?
«TIMOR» é uma denominação de origem malaia, que significa «ORIENTE».
No dia 10 de Fevereiro, na Universidade Sénior de Figueiró dos Vinhos, perante uma sala repleta de assistentes, foi dia de falar da parte leste da ilha de Timor, onde vive um povo chamado «MAUBERE», porque um poeta assim o idealizou, num pequeno livro, ao longo de 85 versos.
«A Epopeia Maubere» foi o título que lhe deu. Mas o que é uma “epopeia”? É um conjunto de acontecimentos históricos narrados em verso, num longo poema, que pode não representar os acontecimentos com fidelidade, porém, relata factos com relevante conceito moral e actos heróicos, transcorridos durante guerras, ou relativos a fenómenos históricos, lendários ou míticos e que são representantes de uma determinada cultura.
A História de um povo pode ser contada assim, em verso? Sim, porque a História também pode ser considerada uma narrativa, aliás, a narrativa é vista como a essência da História. E neste caso (deste livro), História e Conto interligam-se.
Alcides Martins é simultaneamente, na obra que escreveu, poeta, filósofo e historiador de factos concretos: relata acontecimentos históricos; dá-lhes primazia; privilegia o papel de uma dada comunidade, isto é, fala dos Homens e dos factos por eles vividos. É sem dúvida uma narrativa impregnada de forte pendor humanista.
Podemos apontar exemplos de Histórias narradas sob a forma de epopeias, isto é, em verso, em poema: «A Ilíada» e a «Odisseia» de Homero, (relatos em torno da guerra de Tróia e dos seus heróis milenares); «Os Lusíadas» de Camões, (que cantam a descoberta da Índia e onde são descritos episódios da História de Portugal, em glória do seu povo); «Pátria» de Guerra Junqueiro, (que critica a situação de Portugal no final do século XIX); «Mensagem» de Fernando Pessoa, (que trata do glorioso passado de Portugal). E agora este “livrinho”, a «Epopeia Maubere». Mas quem é o povo maubere?
«Maubere» é uma palavra (Tetum) que não define uma etnia, uma raça mas sim uma sociedade constituída por 16 grupos étnicos, num imenso mosaico linguístico e cultural. Isto é, não há um tipo de timorense homogéneo. O povo de Timor é um universo constituído pela diversidade étnica. Durante quatro séculos o elemento colonizador português congregou os vários “povos” timorenses, protegendo e defendendo a identidade étnica, cultural e politica de Timor Leste, mediante 3 pólos aglutinadores: a pela religião católica; pelo culto à bandeira portuguesa e pela língua portuguesa.
É, portanto, um povo com uma existência ancestral.
Alcides Martins traça a parte histórica mais dolorosa vivida por esse povo, num território mártir, que ganhou o respeito do mundo, ao conduzir durante 25 anos, uma luta desigual contra o gigante Indonésio, que teve de desistir dos seus propósitos de conquistar um povo indomável. Mas como começa a história deste povo contada poir Alcides Martins? “Era um território imaculado. De crocodilos e mansos ribeiros. Um povo que vivia o seu fado, golpes de liberdade eram certeiros.”
Esta é uma história, uma obra épica dedicada ao povo de Timor (povo Maubere), onde as figuras da tenacidade, da fé pela vitória, da luta convicta, do desejo arrebatador de liberdade estão presentes. Mas é também uma história de sofrimento, de desespero, de medo, a par com a morte e a vontade de sobrevivência, que se desprendem ao longo dos 85 versos que compõem esta narrativa; como portadora de uma mensagem que pretende despoletar no leitor, ou no ouvinte, um misto de solidariedade, de comoção e de sensibilidade, a par com os factos que relata. Está tudo no seu livro: a invasão da Indonésia em 1975; as sucessivas repressões sobre o povo timorense; a redução trágica da população (acredita-se que durante a ocupação Indonésia, entre 1975 e 1999, foram dizimados cerca de 200.000 timorenses, ou seja, um genocídio que ceifou 1/3 da população; o isolamento deste povo e do seu sofrimento face ao exterior; o massacre no cemitério de Díli; a intervenção da ONU no território; a prisão de Xanana Gusmão e a sua condenação à morte; o referendo de 1999 e que endureceu os massacres por uma Indonésia frustrada e despeitada; a ajuda do estrangeiro, os cordões humanos que se formaram, os donativos que se iniciaram, as camisolas brancas que se vestiram; a alvorada da tão desejada liberdade e a independência; o inicio da reconstrução de um país devastado pela guerra e a sua capacidade para perdoar aos antigos carrascos.
Ao longo do livro sente-se a presença, a solidariedade da Lusitanidade mas também da humilde terra de Figueiró dos Vinhos, que não quis ficar de fora do imenso cordão que abraçou o mundo em prol da causa deste povo (“No belo Figueiró, terra de vinhos, Bandeira de Timor esteve hasteada”).
No final, a fechar a epopeia, a dedicatória carinhosa aos seus pais, num verso de profunda nostalgia e comoção (“Dedico esta humilde epopeia, Aos meus extintos pais que estão no céu”).
É preciso recordar aos povos aquilo que eles mais gostariam de esquecer. Essa é uma das funções dos “recordadores”, daqueles que se dedicam à memória histórica.
Timor Leste («Timor Loro Sae»: que à letra significa “Sol Nascente”) é um exemplo de tenacidade inquebrantável. É uma nação plural, tropical, jovem, católica e que também fala a língua portuguesa.
O poeta teve esse carinho, o carinho de um figueiroense, que a milhares de quilómetros de distância deste povo, que traz no coração, canta-o, justiça-o, reconhece-o universalmente, para que a História não seja apenas constituída por pedaços de memórias perdidas, desligadas, pela bruma dos tempos. Ele prova, através deste livro, que para além da memória oficial de um povo, existe a memória e os sentimentos de cada um de nós, que não deixam cair por terra o fio contínuo da memória e da história das sociedades.

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