Os (nossos) antigos senhores dos oceanos

Julho 14th, 2009

funchal_1Entre as décadas de 40 a 70 do século XX, os oceanos foram sulcados por grandes paquetes que ostentavam pavilhão e nome português. Duas grandes companhias rivalizavam no prestígio, no conforto, no exotismo, na elegância e na vanguarda das viagens de carreira e de cruzeiro pelos mares fora, a Companhia Nacional de Navegação (CNN) e a Companhia Colonial de Navegação (CCN). Só por si, a publicidade que ambas as Companhias faziam em torno dos seus navios, fazia sonhar milhares de portugueses, por terras longínquas e exóticas que ansiavam demandar a bordo de um desses paquetes.imperio_
Em conversa com amigos (e inclusivamente com o meu sogro) que fizeram viagens entre a metrópole e as ex-colónias portuguesas nalguns desses navios, sobressai um tom nostálgico, que resguarda o orgulho das suas experiências transatlânticas a bordo destes “senhores” dos oceanos, numa época que consideram de ouro para a marinha mercante portuguesa contemporânea.
Todavia, descobri com mágoa, que todos esses barcos, à excepção de um (o «Funchal»), já foram desmantelados em terras longínquas, sob as mãos e os maçaricos de sucateiros estrangeiros. infante_
Mas mesmo desaparecidos continuam a fazer parte da memória individual de milhares de portugueses, para além de concorrerem para um pedaço da nossa história contemporânea, enquanto símbolos materiais de uma época e de uma conjuntura nacional que os motivou e gerou.
Durante a minha investigação acerca destes barcos, reuni dezenas de fotos (inclusivamente dos seus interiores), dezenas de páginas de textos com o seu historial, dezenas de fichas com os seus desenhos, reproduções de bilhetes de viagem e de menus das refeições a bordo, programas e instruções de viagem, horários das rotas marítimas e dos portos que frequentavam, panfletos publicitários, filmes promocionais e históricos, filmes “caseiros” feitos a bordo (com as emblemáticas máquinas de filmar “Super 8”), fotos, depoimentos e recordações de antigos passageiros, “funcionários” e marinheiros.mocambique_
À medida que avançava na minha investigação, ressuscitando cada um desses barcos, a minha pesquisa transformou-se fácilmente numa obsessão, numa ânsia de os “colocar” novamente a flutuar nos oceanos, porque descobri fascinado e surpreendido, que os meus amigos e as pessoas com quem falei acerca destes navios, não tinham exagerado na admiração que votavam em honra destes transatlânticos portugueses e que tão bem conheceram.
Esta incrível frota de navios foi-se constituindo depois da 2ª guerra mundial, quando Portugal tomou consciência que necessitava de uma marinha mercante que assegurasse ligações constantes e permanentes entre o Império ultramarino e a metrópole, assegurando tanto o transporte rápido de passageiros como de mercadorias (a criação de uma companhia aérea do Estado – a TAP – inseria-se no mesmo programa, com o objectivo de manter uma ligação regular com Angola e Moçambique).patria_
Assim, em 1945 e por despacho governamental, ordenava-se a renovação da frota da nossa marinha mercante, prevendo-se a construção de 70 navios, entre os quais 9 grandes paquetes.
Entretanto, no início da década de 60, a marinha mercante portuguesa atingia o seu apogeu, contando com uma frota admirável e onde se inseriam 22 paquetes, entre eles, o «Santa Maria», o «Vera Cruz», o «Príncipe Perfeito» e o «Infante D. Henrique», cada um com a capacidade de transportar 1000 passageiros.
Das duas companhias de navegação, a CNN – Companhia Nacional de Navegação – era a mais antiga, fundada em 1871, tendo-se transformado através dos tempos numa das mais importantes empresas de navegação portuguesas de sempre. Iniciou a sua actividade com os paquetes “Portugal” e “Angola”. Em 1950 passa a integrar o grupo empresarial CUF e em 1972 torna-se no maior armador nacional com cerca de 40 navios. Em 1975 foi nacionalizada e inicia um período de decadência com a perda dos seus mercados tradicionais, arruinando-se (em apenas 10 anos) até á sua liquidação definitiva.niassa_
A CCN – Companhia Colonial de Navegação – foi fundada em 1922 e iniciou a sua actividade com as carreiras de Angola, Cabo Verde e Guiné, assegurando durante os anos 60 os transportes marítimos entre a metrópole e as nossas colónias ultramarinas. Em 1974 funde-se com a Empresa Insulana de Navegação (EIN) e que daria origem à Companhia Portuguesa de Transportes Marítimos (CPTM). Entre 1922 e 1974, possuiu 14 navios, entre os quais o «Infante D. Henrique»; «o Vera Cruz» e o «Guiné».
Há no entanto uma nuvem negra que ensombra a bela história de alguns destes navios. A partir de 1961, muitos deles começaram a ser requisitados para o transporte de tropas e material de guerra, ajudando a manter o esforço da guerra colonial-africana até 1974. Destes, o navio “Niassa” seria o inaugurador destes transportes bélicos, contudo seria o “Vera Cruz” que realizaria mais viagens nesse sentido, “chegando a realizar 13 num só ano”. Contas feitas, entre 1961 e 1974, 90% da carga e 80% dos militares que foram enviados da metrópole para a “guerra do ultramar” foram transportados nestes navios de sonho. Muitos destes passageiros fardados quando embarcaram em Lisboa, não sabiam que iriam usufruir apenas da viagem de ida, nunca regressando, deixando no cais pais, irmãos, noivas, esposas e filhos lavados em lágrimas, num paradoxo e num contraste atroz e injusto, com as partidas entusiásticas que outros faziam para os cruzeiros e viagens turísticas, a bordo dos mesmos navios. principe-perfeito_
Todavia, este artigo é para relembrar uma época em que não nos quedámos perante o nosso destino e vocação histórica, assumindo a nossa feição atlântica e aceitando o mar como grande recurso económico e que, de tempos a tempos, teimamos em esquecer e subestimar, deixando para os outros uma coisa que podia ser mais nossa, como quando os oceanos eram, naqueles tempos, continuamente cruzados por paquetes de um país, que ainda ousa em arvorar-se como uma “nação de marinheiros”.
Concluo evocando os nomes destes transatlânticos: Paquetes da Companhia Colonial de Navegação (CCN): Navios: «Colonial», «Vera Cruz», «Pátria», «Guiné», «Ganda», «Império», «Mouzinho», «Serpa Pinto», «Santa Maria», «Uige» e «Infante D. Henrique». Paquetes da Companhia Nacional de Navegação (CNN): Navios: «Moçambique», «Niassa (I e II)», «Quanza», «Angola», «Príncipe Perfeito», «Índia» e «Timor». Alguns destes paquetes tiveram várias versões, casos do «Niassa», «Moçambique», «Guiné» e «Angola». Outros, quando foram vendidos após 1974, tiveram outros nomes, como foi o caso do «Infante D. Henrique», que mudou de nome 3 vezes, para «Vasco da Gama», «Seawind Crown» e por último «Barcelona» (com bandeira da Geórgia), tendo sido desmantelado na China em 2004. Também o «Príncipe Perfeito», lançado à água em 1960 (e que foi considerado o mais elegante navio de passageiros português, com uma estética perfeita, qualquer que fosse o ângulo de observação) teve mais 4 nomes, equivalente a 4 transacções que sofreu: «Al Hasa», «Fairsky», «Vera» e «Marianna 9», tendo sido desmantelado na Índia em 2001. O «Niassa II» foi desmantelado em Espanha em 1979; o «Índia» na Formosa, em 1977; o «Timor», na China em 1984; o «Angola» em 1974; o «Uige» em 1980. Ainda na Formosa seriam tambem desmantelados o «Santa Maria» e o «Vera Cruz», ambos em 1973. O último sobrevivente da antiga frota de navios de passageiros portugueses (que em finais da década de 60 chegou a contar com 26 paquetes em actividade) é o «Funchal», que continua ainda no activo.
Carreiras que estes navios faziam: África Ocidental e Oriental, Brasil, América Central, Europa (Mediterrâneo), e Oriente (Singapura, Hong Kong e Dili).santa-maria_
Em meados da década de setenta, com o aumento do número de passageiros a preferirem a utilização do avião para viajarem, em detrimento dos paquetes, estes vão perdendo importância como navios de carreira. Presentemente são utilizados preferencialmente em cruzeiros e viagens turísticas. Contudo e apesar disso, aceitei relembrar esta belíssima colecção de barcos portugueses, sobretudo, com o intuito de reavivar a memória dos muitos que os utilizaram, numa certa época, numa certa altura das suas vidas e que indelevelmente a eles ficaram ligados.vera-cruz_

10 Respostas a “Os (nossos) antigos senhores dos oceanos”

  1. Carlos Pinheiro diz:

    Dou-lhe os parabéns pelo magnífico trabalho apresentado sobre os nossos “Antigos Senhores dos Oceanos”, os Paquetes Portugueses que cruzaram os mares.
    Mas mesmo assim e acreditando que um trabalho deste só se produz com muito trabalho de recolha e pesquisa, permita que lhe sugira mais um esforço lendo PAQUETES PORTUGUESES de Luís Miguel Correia, Edição de Edições INAPA, de 1992.
    Ali poderá verificar que lhe faltou falar dum armador também importante, a Sociedade Geral que também teve 6 belos paquetes, ALFREDO DA SILVA, ANA MAFALDA, RITA MARIA, MANUEL ALFREDO, SANTO ANTÃO e AMÉLIA DE MELO. Este armador explorava mais as linhas da Guiné e de Cabo Verde.
    Também da Insulana falou pouco e ela chegou a ter também uma boa frota para explorar as linhas das Ilhas, sendo a sua jóia da Coroa o FUNCHAL mas também o Cedros, o Arnel, o Ponta Delgada, o Angra do Heroísmo, o Faial e o Carvalho Araújo que me trouxe da Guiné para onde o UIGE me tinha levado.
    E já agora, se permite, os percursores destes senhores dos mares foram os vapores tendo sido o 1º o “Conde de Palmela”, que entrou no Tejo pela primeira vez em 14 de Outubro de 1820 e hasteava a bandeira do Reino Unido de Portugal Brasil e Algarve tendo a sua chegada marcado uma nova fase na história da Marinha Mercante portuguesa: O aparecimento do vapor. (Do livro Paquetes Portugueses já referido).
    Renovo os meus parabéns.

  2. Olinda diz:

    Parabéns pelo post tão bem conseguido. Gostaria de saber mais informações sobre os paquetes Angola e Moçambique onde viajei em 1971 de Nacala a Lisboa e de Lisboa a Nacala.
    Abraço
    Olinda

  3. José Silva diz:

    Trabalho louvável, pela pesquisa e pelo gosto em dar a conhecer algo que é muito nosso. Os meus parabéns. Já agora aproveitava para fazer umpedido ao Senhor Tozé Mc Silva. Gostava de saber ou de ler algo que haja escrito sobre como era a vida a bordo destes paquetes, pois houve-se muita coisa, que poderá não corresponder à realidade. Poderá fornecer-me algum veiculo desa informação. Obrigado
    Um abraço
    José

  4. CAZEVEDO diz:

    Caro Senhor Silva confesso-lhe a minha surpresa por ter encontrado este seu blogue e nele este magnifico (simples) estudo sobre os “Antigos Senhores dos Oceanos”. Procurava sim alguma coisa sobre os antigos paquetes que nos levaram até à Guerra Colonial. Eu fui levado no “Infante D. Henrique” no ano de 1968. Sou o Presidente do Núcleo da Covilhã da Liga dos Combatentes e entre muitas actividades que vamos realizando, propomo-nos agora levar a efeito uma exposição evocativa da efeméride dos 50 Anos do Inicio da Guerra Colonial. Entre fotos e outros materiais, pensamos integrar fotos de armamento, viaturas e os navios que nos transportaram. Hoje deparei com este magnífico estudo, porque alia as fotos com um descritivo magnifico. A Exposição terá lugar de 4 a 15 de Agosto no Espaço cedido gentilmente pelo Serra Shoping – Covilhã, local onde milhares de antigos Combatentes irão observar e recordar bons e maus momentos, como é o caso do transporte de ida, porque não sabiam se havia a tal passagem de regresso. Sem delongas gostaria de solicitar a sua colaboração com a cedência das imagens e do texto que publica. Penso que daria uma enorme satisfação a todos quantos vão ver esta mostra. Fotos dos Paquetes, eu tenho e outros tem, mas o texto é fantástico, mostrando o muito trabalho de investigação que aqui colocou e que é bom de observar. A 9 0u 10 do mesmo mês haverá uma Conferência sobre o têma. Já tem o meu contacto e se achar conveniente envie-me o seu contacto pessoal que entro em contacto directo.
    Um abraço e parabéns por este belo trabalho feito para a minha geração.
    João Azevedo

  5. Rogério Russo diz:

    Caro Tó Zé, também eu viajei no Moçambique e no Principe Perfeito do Lobito para Lisboa em 1965. Foi uma viagem que me marcou para toda a vida. Vindo do interior de Angola com 6 anos não me lembrava do mar nem supunha que ojectos tão grandes e magníficos pudessem assim andar em cima dele!.. Tenho tido a sorte de viajar bastante quer de avião quer de barco. Os navios de cruzeiro actuais apesar das instalações que possuem não tém o ambiente dos de antigamente.

  6. Irene Borges Costa diz:

    Caríssimo, Tó Zé Silva, parabéns por esta excelente reportagem que de uma forma ou outra toca na memória de todos os portugueses, pois, é difícil haver alguma família que não tenha alguém que viajasse nalgum destes barcos. Os meus irmãos viajaram nos anos 50, penso que no Vera Cruz, para o Brasil.
    Cumprimentos,
    Irene Borges Costa

  7. Parabens! Gostei muito. Não sabia nada do que tinha acontecido ao Santa Maria (viajei nele sendo criança com a minha mãe para a Venezuela) agora graças a sua informação já sei do seu triste fim. Foi pena, mas eram outros tempos. Ao menos restam alguns não tão gloriosos como os que vi hoje no Ilhavo Sea Festival: o “Creoula”, o “Santa Maria Manuela” e o “Argus”, este último espero que seja todo restaurado.

  8. fernandomarques diz:

    Este trabalho está bem construído e tem como finalidade avivar memórias de um passado que não pode ser esquecido. Também eu naveguei em navios médios(Império e Angola). Apenas um pequeno reparo: o “UÍGE” pode ter sido abatido à carga em 1980. Mas o desmantelamento só acontece em 1998 no sucateiro de Alhos Vedros(Moita). Fiz questão de de pedir autorização para percorrer os seus claustros. Meses depois quando lá voltei, o cadáver já não existia, fiquei com a sensação de ter sido cremado.

  9. João Grenha diz:

    Tendo viajado nos navios PÁTRIA, IMPÉRIIO e INFANTE D HENRIQUE e tentando através da internet saber se existem listas de passageiros acabei por encontrar o seu blog, com uma informação interessante sobre esses e outros navios.

    Por acaso tem ideia sobre a eventual existência de arquivos com as listas dos passageiros da CNN através dos anos? Se por acaso me puder dar uma pista, agradeço, pois creio que os registos da CNN e CCN devem estar algures.

    Muito obrigado

    Um abraço

  10. Francisco Guerra Santos diz:

    Exmºs. Srs. Peço desculpa pelo incómodo!. Sou grande amigo do Luis Pimenta Monteiro, que vivia na Matola e que nos anos de 1970/ 1980, era Mestre de Máquinas no Navio Costeiro, Polana. Eu trabalhava na Beira, na Manica Freight Services e sempre que ele ia à Beira, almoçávamos juntos. Desde que vim para Portugal em 1980, nunca mais tive contacto com ele. Nesta altura já estará reformado. Gostaria de saber do seu paradeiro. Em primeiro, se ainda é vivo, que ele deve estar perto dos 80 anos e se ainda se encontra por terras Moçambicanas ou se estará aqui em Portugal. Ele na altura, dizia-me que tinha uma filha casada no Maputo, mas eu não a conheci. Ficar-vos-ia muito grato, se me pudessem dar alguma dica sobre este meu grande amigo. O meu contacto mais directo, é: email: guerrasantos@sapo.pt
    Obrigado e um FELIZ NATAL, Guerra Santos

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