Foi há 50 anos que o inferno passou pelo Vale do Rio – Parte I

Dezembro 5th, 2011


Naquela segunda-feira, dia 28 de Agosto de 1961, perto das 11 horas da manhã, José Simões andava a “renovar” pinheiros no Casal de Alge, quando um homem (João Almeida) apareceu junto de si “espavorido”, de sacho às costa, a avisá-lo de que o inferno subia a serra rumo ao Vale do Rio. Alarmado, José Simões pensou na mulher, nos filhos e na casa e calcorreou carreiros e atalhos para salvar o que humildemente lhe pertencia. Alcançou a aldeia perto do meio-dia, encontrando um ambiente tresloucado e de pânico generalizado. O fogo já andava atrás da serra a poente da povoação. As hortas envolventes já ardiam sob a chuva de fagulhas que desciam do céu vermelho escuro. Sentiu nesse dia que o destino o castigava, quando pouco tempo depois, olhou em redor das serranias, transformadas em cumes de fogo.
Entrou na casa e agarrou na esposa (Maria Jacinta da Silva), nos dois filhos (um com 2 meses e outro com 1 ano) e numa mala cheia de roupa, e levou-os para dentro de uma mina, localizada na aldeia. Deixou-lhes um presunto e uma broa para não passarem fome, enquanto o inferno rugisse uns metros acima deles. Esse refúgio foi-o de muita gente, um túnel escuro com mais de 50m de comprimento e com água que “dava pelos joelhos” e que José Simões e os vizinhos esgotaram, à força de cântaros, carregando-os ladeira acima, aspergindo portas e janelas das suas casas, que já escorriam resina, derretida sobre o calor abrasador e sufocante que abraçava a humilde povoação. O gado morreu carbonizado dentro dos currais, ainda soltou o porco mas acabou por morrer na fuga, encosta abaixo em direcção ao rio.
José Simões tinha 32 anos quando viveu a experiência mais terrível da sua vida. Passados 50 anos, quando lhe perguntei sobre estas recordações, os olhos faiscaram, e lançando a cabeça levemente para trás, disse-me: “Se me lembro desse incêndio, ai se me lembro!”. Por entre as suas memórias adormecidas e que eu desafiara a acordar, ia soltando laivos conciliadores com o tempo, pensando mais consigo próprio do que para com o entrevistador: “Nesse dia vi pessoas que não se falavam havia anos, a darem água a beber uma às outras, naquelas horas de aflição!”
Há 50 anos aquele dia de Agosto amanhecera quente, de tal forma, que ao meio-dia já o calor sufocava a vila de Figueiró dos Vinhos, eclodindo um incêndio em Aldeia de Ana de Aviz, que os Bombeiros prontamente extinguiram.
A hora do almoço avança e no horizonte, a sul da vila, torna-se visível um grande incêndio que lavra lá para os lados de Cernache do Bonjardim, envolvendo os cabeços que rodeiam Santa Maria Madalena. Contudo, era longe e havia também o Rio Zêzere que servia de corta-fogo natural, factos que tranquilizavam as gentes figueiroenses.
Por volta das 14 horas a sirene alerta para um novo incêndio que desta vez rebenta na serra de S. Neutel, nos arredores da povoação de Cabeças. O sinistro toma proporções alarmantes e rapidamente faz o céu ficar escuro, fazendo desaparecer o sol. A tarde avança e começam a chegar à vila mensageiros vindos do Carapinhal e dos Chãos, que anunciavam a eminência da destruição das primeiras casas, prestes a serem engolidas pelo fogo. O pânico instalou-se e generalizou-se quando os sinos da Igreja Matriz tocam a rebate. O trabalho na vila parou, fecharam-se os estabelecimentos e abandonou-se o trabalho nas fábricas. Os turistas hospedados no Hotel Terrabela debandam para longe da vila. Todos procuravam acorrer à zona atingida pelo incêndio, que assumia proporções dantescas. O executivo municipal multiplicava esforços para conseguir o apoio de meios militares e de outras corporações de Bombeiros. A praça do município foi transformada em centro de operações, com a presença de várias autoridades civis e militares, entre elas o próprio Governador Civil. Entretanto as chamas já ameaçavam outras povoações (Fontainhas, Chavelho e Coutada), queimando as primeiras casas na zona ocidental da freguesia de Figueiró dos Vinhos. As fagulhas caíam na vila e o cheiro a queimado era intenso. Temeu-se pela própria vila e que a providencial mudança de vento salvou. Junto dos Bombeiros e dos militares colaboravam “muitas centenas de pessoas, de todas as categorias”.
Porém e sem que ninguém se apercebesse, decorria outro drama bem mais profundo lá para “as bandas do rio”, a sul da freguesia figueiroense.
O ano de 1961 começara para os Bombeiros de Figueiró dos Vinhos com uma intervenção no concelho de Castanheira de Pêra, onde um incêndio, no início do ano, colocou em risco a «Serração Castanheirense». “Os denodados soldados da paz conseguiram, de colaboração com os seus colegas locais, limitar ao máximo os prejuízos do sinistro”. Ainda o Verão estava longe e em 12 de Março declara-se um incêndio entre as serras da Castanheira de Pêra e a Ribeira Velha e que “após porfiados esforços os Bombeiros conseguiram extinguir”. A imprensa começava também a insistir junto dos proprietários agro-florestais, apelando para que limpassem os seus terrenos, a fim de “reduzir ao máximo o perigo de incêndios”.

3 Respostas a “Foi há 50 anos que o inferno passou pelo Vale do Rio – Parte I”

  1. Um drama extraordináriamente bem descrito que me empolgou e mo fez sentir até ao final! Os meus parabens!
    O. Oliveira

  2. kyta diz:

    Tantas e tantas vezes entrei naquele quartel dos bombeiros , onde o meu tio Zé Lima foi comandante.
    Mesmo por detrás daquela viatura existia um muro contínuo até à casa da Criança, onde levei uma “banhada” e fiquei a saber o que eram os “Gambuzinos”. Qual figura de parvo de saco aberto….
    Excelente relato da “estória” de Figueiró!

  3. Luís Filipe Silva Lopes diz:

    Ainda me recordo perfeitamente deste dia.Os meus avós e as minhas tias (não me lembro se também os meus tios), que residiam no Carapinhal vieram à Ribeira de S.Pedro ajudar os meus pais a desfolhar uma horta de milho.A meio da tarde, perante a proximidade das colunas de fumo que se adensavam e o barulho dos motores dos aviões que, a baixa altitude, sobrevoavam a região, decidiu-se que os adultos avançavam para o Carapinhal na tentativa de salvar o que fosse possível, à excepção da minha tia Maria que ficou a tomar conta das crianças.Quando, rente à noite decidiu avançar connosco para o Carapinhal, foi aconselhada pelas pessoas que estavam ao pé da casa do meu padrinho Manuel Bispo a não prosseguir e, em alternativa, a trazer as crianças para a vila.O conselho foi acatado e, postos os pés ao caminho, fomos acolhidos em casa da “menina” Albertina e do Sr.Narciso do Tribunal, padrinhos do meu primo Duarte.Do ponto mais alto da casa via-se a serra do Douro, que mais parecia uma tocha a alumiar o vale da Ribeira da Madre.
    Memórias dum tempo que o tempo não apaga.

    Luís Filipe

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