Foi há 50 anos que o inferno passou pelo Vale do Rio – Parte III

Dezembro 5th, 2011


O saldo negativo cifrou-se em meio milhão de árvores sacrificadas, “onde arderam dois mil e quinhentos hectares de pinhais”, duas aldeias calcinadas, “onde 185 pessoas ficaram sem abrigo” e dois mortos, “por asfixia e carbonização, José Antunes Paulo, do Vale do Rio e de António David Campos, do Chavelho”. “Das 49 casas que existiam no Vale do Rio, arderam 35. Também arderam dezenas de anexos que serviam de arrecadação, currais, capoeiras, fornos de broa e centenas de animais. A população era de 167 moradores. No lugar do Casalinho havia 17 habitantes distribuídos por 5 casas que arderam na sua totalidade. A aldeia foi simplesmente riscada do mapa”.
Os repórteres (não identificados) do Jornal local «A Regeneração», que nesses dias fizeram no terreno uma cobertura notável dos acontecimentos, narraram: “Vimos ferros de camas torcidos e calcinados, sinais de derramamento de gorduras, milho queimado, ovelhas, cabras, suínos, batatas e utensílios domésticos, pedaços de relógios, potes de azeite partidos e entornados, eiras repletas carbonizadas, tudo deformado, apavorante. Os soldados abriam longas valas, trazendo em padiolas dezenas e dezenas de animais domésticos carbonizados e mutilados a fim de serem enterrados. Era um espectáculo sinistro, terrivelmente marcado. Os poucos regressados do lugar (Vale do Rio) não pareciam pessoas, eram mais farrapos humanos, abatidos por profunda depressão moral e física.”
No dia 01 de Novembro de 1961 a Câmara Municipal (composta pelos seguintes elementos: Henrique Vaz Lacerda, Presidente; Manuel Alves da Piedade, Vice-Presidente; Aníbal Silveira Herdade e José Simões de Abreu, Vereadores), fazia publicar na imprensa local um agradecimento público dirigido às Corporações de Bombeiros que actuaram nos incêndios de 28 e 29 de Agosto: “(…) cumpre-me vir à presença de Vª Exas. para manifestar o mais profundo e comovido agradecimento deste Concelho à Corporação dos Bombeiros , a cujos destinos e Comando V. Exas. tão proficientemente presidem, pela valiosíssima colaboração que nos deram nos dias 28 e 29 de Agosto ultimo, no combate ao incêndio que tão tristemente atingiu e devastou grande área desta freguesia de Figueiró dos Vinhos(…). Queiram, portanto, Vª Exas. aceitar a expressão sentida do nosso inolvidável agradecimento, que pedimos transmitam a todo o Corpo Activo dessa simpática e humanitária Associação”.
Em Fevereiro de 1962, a Câmara Municipal de Figueiró dos Vinhos dá inicio aos trabalhos de reconstrução da aldeia, sendo necessário proceder também, e com urgência, à beneficiação e alargamento do caminho municipal de acesso ao lugar, com projecto que mandou executar para o efeito.
A povoação de Vale do Rio foi reconstruída entre 1962 e 1964, por determinação do Ministro das Obras Públicas (Arantes de Oliveira), que atendeu às (muitas) pressões que o executivo camarário havia desenvolvido junto do poder central, tendo sido inaugurada em 24 de Outubro de 1964, pelo Presidente da Republica, Almirante Américo Tomás.
O Chefe de Estado foi recebido na vila de Figueiró dos Vinhos por volta do meio-dia desse sábado, pelas autoridades locais e regionais e por muitos populares, que aguardaram “o carro presidencial” ao Barreiro (Rua Major Neutel Abreu).
Coube às corporações de Bombeiros presentes fazerem-lhe a guarda de honra, ao som do hino nacional tocado pela Filarmónica Figueiroense. Atravessou a pé as ruas Luis Quaresma Vale do Rio, Manuel Simões Barreiros até ao “Ramal” (onde “por momentos” apreciou o Jardim Municipal), “delirantemente aclamado por vivas, ao mesmo tempo que das janelas eram lançados milhares de papelinhos verdes e vermelhos e montões de pétalas de flores, constituindo um espectáculo surpreendente e inédito na nossa terra”.
Seguiu depois para o Vale do Rio onde chegou cerca das 13 horas, sendo recebido por muito povo “que para ali se tinha deslocado a fim de assistir à cerimónia e também pelo Rancho Folclórico do Olival”.
A entrada da povoação estava emoldurada por um arco artístico revestido de verdura e por uma fita com as cores nacionais, que Américo Tomás cortou, com uma tesoura oferecida por uma velhinha numa salva de prata, “impecável no seu trajo domingueiro e com a alegria estampada no rosto”.
Armou-se uma tribuna no largo da Capela da povoação, repleto de gente, onde discursaram o Presidente da Câmara Municipal (Henrique Lacerda), o Ministro das Obras Públicas (Arantes e Oliveira) e o Presidente da República.
Foi devido a esta tragédia e ao renascer das cinzas de uma aldeia, que o concelho figueiroense recebeu pela primeira vez, na sua história, um Chefe de Estado Português. Henrique Lacerda não perdeu a oportunidade e aproveitou para dissertar sobre as belezas naturais do rincão concelhio, dos seus heróis, da sua apetência para as Artes, dos seus Artistas (sobretudo de Malhoa), da sua rusticidade e das suas gentes simples e humildes mas também do seu potencial para o Turismo Nacional “como zona de eleição a aproveitar e a desenvolver”.
Américo Tomás, visivelmente emocionado, congratulou-se pela humilde “aldeia, que ressurgia mais bonita do que era, das cinzas de um pavoroso incêndio”.
As cerimónias de inauguração terminaram com um almoço servido no ginásio da Escola Secundária Municipal “num ambiente muito elevado”.
Do incêndio de 1961 nunca se apuraram as causas concretas. Desses dias de má memória devia ter ficado uma lição sofredoramente aprendida. Contudo, passados 50 anos desta tragédia, recordo o Verão de 2005 que abrasou cerca de 50% do território agro-florestal figueiroense e que voltou a colocar em risco várias povoações. A rotina dos fogos, o som da sirene dos Bombeiros, continuam a marcar, a ecoar na memória das gentes do concelho, a escrever páginas de dor e lágrimas perante o braseiro sazonal que transforma as nossas serranias luxuriantes em paisagens lunares escuras e cinzentas.
Sobre os homens que enfrentam as labaredas fica o registo que colhi há uns bons anos atrás, na companhia do então comandante Aguinaldo Feitor Silva e de um Bombeiro (Jorge Paulo Nunes Lopes), enquanto perscrutávamos alguns recantos florestais para realizar um pequeno filme dedicado aos bombeiros figueiroenses. Ouvi uma expressão que me ficou para sempre gravada na minha memória. Esse Bombeiro que nos acompanhava, ao olhar para a imensidão da mancha florestal, entrecortada pela serrania beirã, disse em jeito de desabafo: “Olhe Comandante, no Verão enquanto uns gastam o suor nas praias, nós (Bombeiros) gastamos o nosso aqui, no meio destas matas!”

(Fontes: Relatório enviado ao Inspector de Incêndios da Zona Sul (Lisboa), datado de 23 de Abril de 1963;
Jornal «A Regeneração», nºs 1025, 1026 e 1030, de 1961; “O grande incêndio de 1961”, «Jornal de Figueiró dos Vinhos», nº56, Agosto de 1986; Câmara Municipal de Figueiró dos Vinhos, Relatório sobre o incêndio e a reconstrução das aldeias de Vale do Rio e Casalinho, CMFV, 1964, pp. 9-10; Acta de reunião da Direcção da AHBVFV, de 02 de Setembro de 1961; Pires, Simões, “Foi há 25 anos no Vale do Rio”, in «Jornal de Figueiró dos Vinhos», nº 54, Agosto de 1986; Dias, José Rodrigues, “Ainda o grande incêndio de 1961”, in Jornal «A Regeneração», nº 1132, Fevereiro de 1966; Acta da reunião da Direcção da ABVFV, de 02 de Setembro de 1961; Acta do Conselho Municipal de 15 de Setembro de 1961, p.64; Jornal «O Norte do Distrito», nº 284, de 25 de Outubro de 1964. Imagens: site da Biblioteca Municipal de Figueiró dos Vinhos – «Figueiró em Imagens» ; Aguinaldo Feitor Silva e espólio do autor.)

Uma Resposta a “Foi há 50 anos que o inferno passou pelo Vale do Rio – Parte III”

  1. David Domingos diz:

    Excelente resumo histórico de um episódio trágico que marcou a população figueiroense, particularmente os residentes na povoação de Vale do Rio, onde tenho raízes. Pena é que tais episódios se percam tão fugazmente na memória daqueles com poder para (tentar) mudar o rumo dos acontecimentos. Assisti e combati no verão de 2005 esse flagelo e, permitam-me o desabafo, nada se fez antes, nem após, pelo que corremos o risco sério de ver nova edição deste inferno, nos tempos próximos. Fica, pelo menos, a certeza de que no combate estarão sempre os bombeiros voluntários de Figueiró dos Vinhos, voluntariosos como sempre!

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