Cheira a broa fresca

Novembro 12th, 2011

Aos domingos, cheirava a broa fresca assim que entravamos na sala da minha avó Mariana.
A mesa posta para a família, com uma toalha axadrezada verde e branca. Ao centro, um prato grande de porcelana antiga de faixas azuladas, cheio de chouriças de lombo e farinheiras, que entornavam o molho, seduzindo os cadinhos dos olhos e fazendo crescer água na boca. O toucinho e a entremeada fumegavam em compridas travessas elípticas, misturando odores com as especiarias que polvilhavam o naco de carne assada, acamada em batatas coradas, numa assadeira cerâmica avermelhada, acabadinha de sair do velho forno de pedra abobadado e que a minha prima acendia logo pela manhã.
A arquitectura do repasto completava-se com pratos de febras assadas, que as minhas tias aconchegavam na mesa. A terrina com a canja, engordurada com uma galinha que teve má sorte nesse dia, sacrificada em honra da tribo familiar, completava o menu da comezaina.
Os meus tios algazarravam no corredor e preparavam as munições vinícolas, com que se havia de regar o banquete. O vinho, o sangue da terra, saído da lida em torno das videiras, cujas uvas generosas foram pisadas com os pés deles no “patamar” da adega do meu avô, libertava os espíritos, clareava as almas e abrasava a conversa do oráculo familiar.
Comia-se primeiro a broa, que se recobria com queijo fresco ou lascas de presunto, acamando o estômago para a batalha almoçante, que se havia de travar com vagar!
Falava-se da horta da “Valada”, dos pinheiros da “Sorriba”, da vinha da “Poisia”. Cortava-se na casaca da vizinhança, enquanto se trinchava a carne. Um dos meus tios arrotava e a risota estoirava por entre ditos maliciosos. Os olhos brilhavam e a razão tremelicava por entre trivialidades e futriquices costumeiras, misturadas com o copito de bagaço para ajudar a digestão.
A tarde acabava imperiosa, com a rapaziada mais nova a jogar à bola no pequeno adro junto à capela do Carapinhal. Os homens reúniam-se em comandita e faziam o périplo habitual pelas adegas uns dos outros.
Mesmo com a sala vazia, mesmo com a casa da minha avó já desaparecida, cheirará sempre a broa fresca, neste recanto mágico das minhas memórias!

5 Respostas a “Cheira a broa fresca”

  1. António Fael diz:

    Como é bom recordar as nossas memórias de infância

  2. kyta diz:

    Venha de lá uma fatia desse pão de Deus, se possível com uma sardinhoca bem gordinha e um néctar daqueles do costume, caseiro!
    Abraço pelas memórias…

  3. Victor Coelho diz:

    Obrigado TóZé pela partilha. As memórias vão matando (algumas) saudades. Abraço.

  4. Maria Manuela diz:

    Fui lendo o texto e os cheiros vieram até mim. AH o sabor da farinheira, do presunto, e acima de tudo, as saudades da casa dos avós e do ambiente simples e carinhoso.

  5. Luís Filipe Silva Lopes diz:

    Que saudades do tempo em que a poesia era escrita com palavras tão simples….

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