Foz de Alge: as “ferrarias” do Império

Agosto 15th, 2008

ruinas_das_ferrariasQuando olho as paredes em ruínas das antigas Ferrarias da Foz de Alge, sinto admiração pelo nosso passado, quando procurávamos bastar-nos a nós próprios. Retirávamos da natureza tanto os nossos melhores produtos agrícolas e florestais, como os vários minérios com que alimentávamos o sonho da nossa independência económica, saídos dos recursos do nosso solo e subsolos portugueses. Foram esses mesmos recursos, em grande parte, que possibilitaram o nosso temperamento aventureiro e que nos levou a sulcar os oceanos, procurando muitas vezes em terras longínquas aquilo que tínhamos em nossa casa e cujo valor subestimávamos. Mas foi igualmente através deles que potenciámos a nossa tenacidade para expandir um pequeno país, que ousou tantas vezes surpreender o mundo.
Desta forma, inicio este artigo sobre as antigas Ferrarias da Foz de Alge e do Reino de Portugal, e que faziam parte de um imenso laboratório metalúrgico nacional, onde exímios mineiros, ferreiros e metalurgistas contribuíram para a emergência de uma indústria, que foi fundamental na história do país e dos homens que o serviram. A indústria do ferro em Portugal intensificou outras indústrias afins e beneficiou a sociedade e a economia do país. Ligava-se intimamente ao sector florestal em complemento com uma precária economia de base agrícola, movimentando milhares de braços e energias, num esforço contributivo de uma nação ávida de se libertar de jugos económicos estrangeiros, entre os séculos XVII e XIX.
Desta forma, os primórdios da indústria do ferro no nosso país, chegam às matas da Foz de Alge, que contribuiu também para esse labor intensivo e ao qual devemos render homenagem em sua memória.
Na região do interior, num país onde as actividades económicas estavam intimamente ligadas ao sector agro – pastoril, o início de um empreendimento de uma unidade de mineração e de transformação do ferro, pelo menos desde 1654 (D. João IV), era no mínimo surpreendente. ferrarias_da_foz_de_alge
Geologicamente, o concelho de Figueiró dos Vinhos é constituído por xistos, grauvaques, granitos e também de alguns quartzitos. Contudo, o ferro (e também o ouro, no Rio Zêzere) foi explorado com objectivos económicos, de forma mais intensa, pelo menos desde meados do séc. XVII, sobretudo nas freguesias de Campelo e de Figueiró dos Vinhos. Das jazidas exploradas para prover minério à unidade fabril, posso referir a mina da Ribeira da Provença, localizada entre as Bairradas e o Vale do Rio, e que pode ser estudada em íntima ligação às Ferrarias da Foz de Alge.
Assim, no pequeno estuário formado pela Ribeira de Alge com o Rio Zêzere (o qual delimita o concelho de Figueiró dos Vinhos a Sul), na margem esquerda dessa ribeira, e a cerca de 10 Kms da Vila de Figueiró dos Vinhos, existe ainda hoje o que resta das ruínas de uma antiga fábrica de fundição de ferro, e que no seu tempo foi das melhores do país.
Pode-se também afirmar, que existem muito poucas unidades proto-indústriais de transformação do ferro em Portugal, que se possam comparar às das ferrarias da Foz de Alge, e que fazem delas um importante património arqueológico, não só local, mas também de âmbito nacional, à espera de serem mais estudadas e sobretudo intervencionadas. As ferrarias da Foz de Alge ainda se mantêm perceptíveis, embora a localização das mesmas, em leito de ribeira, lhe imponha o risco do seu total desaparecimento, dificultando a sua conservação como estrutura arquitectónica identificável e monumental. A construção da barragem do Castelo de Bode (inaugurada em 1951), e que elevou o nível das águas do Rio Zêzere para a cota 122.00, fez submergir o que restava do antigo complexo, que ficou à mercê dos caprichos da albufeira, e que só em raras ocasiões põe totalmente a descoberto o que ainda não foi consumido pela natureza e pelo tempo. Recentemente, a construção de uma nova ponte desfechou mais um golpe neste património, infligindo severas perdas e danos às ruínas, tendo feito desaparecer a Casa do Administrador. Infelizmente, a pouca sensibilidade para as questões patrimoniais por parte dos meus conterrâneos, não lhes permitiu perceber a fortuna patrimonial e a susceptível e potencial musealização do local. Para além da preservação/recuperação das ruínas, podia-se ter construído um pavilhão de apoio localizado nas suas proximidades (na Cova da Eira ou na Foz de Alge) e que permitiria a constituição de um núcleo de pesquisa e estudo da mineração e transformação do ferro em Portugal, dotado com maquetes, modelos, mapas, brochuras temáticas, e artefactos arqueológicos que tivessem sido lá produzidos (canhões, balas de artilharia, pregaria, baionetas, espingardas) fotos, desenhos, fogões para aquecimento, alfaias agrícolas, etc. Tal núcleo, para alem de integrar e enriquecer uma Rota Turística, poderia ser visitado por escolas, alunos universitários, estudantes-investigadores, etc. Não imaginam a quantidade de trabalhos científicos e de divulgação, que pólos do género produzem todos os meses por este país fora. Empreendimento esse, que poderia ter sido adicionado às potencialidades turísticas da “nossa” Foz de Alge, agora dotada com um magnifico Parque de Campismo plantado à beira do Rio Zêzere e onde poderá ser igualmente construída uma unidade turística interligada com os recursos da região. Deste modo, poderia ter sido dado àquelas ruínas um lugar de destaque, para a pesquisa e conhecimento arqueológicos da produção do ferro proto-indústrial em Portugal. Mas infelizmente, entristece ver perder-se debaixo das águas e do lodo da Barragem do Castelo de Bode o sonho dos nossos antepassados, cuja memória merecia ser salvaguardada, entendida, estudada, divulgada, homenageada e preservada.planta_das_ferrarias_da_foz_de_alge
Aquela fábrica fundiu canhões, peças de artilharia naval e de fortificações militares, pregaria para as naus, canos de espingardas, baionetas, varetas, fechos e folhas de espadas, fogões para aquecimento (um deles está no convento de Mafra), alfaias diversas para a agricultura, etc. Em 1936, o Engenheiro António Arala Pinto (na altura chefe da 3ª Circunscrição Florestal) encontrou na mata circundante às ferrarias, “uma dúzia de moldes de balas, um contra-molde dum fuso de madeira, e o molde dum cano de canhão habilmente malhetados”, bem como picaretas, hematites e diversas balas de artilharia de calibragens diferentes. Gostaria de saber onde param todos esses objectos!? Servem também como testemunho da capacidade produtiva da fábrica da Foz de Alge, as memórias de um nobre português (António da Rocha Barbosa), em que enumera os produtos saídos das forjas das ferrarias “desde o anno de 1734” (e que eram as seguintes): “231 peças d’artilharia de vários calibres, pesando juntas 6337 arrobas; 6078 balas de munição, pesando 282 arrobas; dois fogões grandes, um para Mafra, e outro para o Conde de Unhão, pesando juntos 347,5 arrobas; de ferro batido: 1273 arrobas de pregos e cavilhas; um fogão para o hiate de Sua Majestade, 19 arrobas; 75 arrobas de ferro, em três carradas, para o convento e Igreja dos Religiosos de S. Domingos da villa de Pedrógão”.
O combustível usado para a fundição era a cepa de moita e com a qual se fazia o carvão. Esta encontrava-se nos montes circundantes à fábrica, muitas vezes em locais de difícil acesso. Era arrancada pelos moradores da região que faziam disto a sua profissão/ocupação, nos intervalos das suas actividades agrícolas. O transporte dos materiais era feito por carreiros com juntas de bois alugadas e depois por barco até Lisboa.
As minas de ferro que abasteciam a fábrica durante a sua existência eram, entre outras, as de Barranca, próximo de Alqueidão de Maçãs de D. Maria; as do sítio do Pinheiro, termo de Pousaflores, donde se extraiu ferro durante mais de duzentos anos; junto à Serra de Alvaiázere, no sitio do Sobral, freguesia de Maçãs de Caminho; na Rapoula, Serra de Aguda, freguesia de Avelar, e junto à Ribeira da Provença, entre Bairradas e Vale do Rio, no concelho de Figueiró dos Vinhos. O transporte da matéria-prima até à Fábrica fazia-se em moldes idênticos ao que era utilizado para o produto acabado.
As ferrarias da Foz de Alge usufruíam e aproveitavam duas energias vitais para o funcionamento das suas forjas e martelos de refino: a energia hidráulica, com o caudal da Ribeira de Alge, que mesmo no pico do Verão se mantinha com a força motriz necessária para accionar os foles das fornalhas, e cujo (grande) Açude – 80m de largura por 7m de altura – localizado a 300m para Norte, era vital para a canalização de água que fazia “mover máquinas e engenhos”; e a energia eólica, que accionava também foles de algumas fornalhas (caso faltasse a água), aproveitando os ventos dominantes de norte e que percorriam o pequeno estuário formado pela confluência da Ribeira com o Rio Zêzere.
Mostro uma planta destas ferrarias, que elaborei com base numa antiga planta de 1804 e que actualizei com base num inventário de 1857, e que apoiada num levantamento topográfico (que realizei a parte das ruínas) e num ortofotomapa do local, dá uma ideia daquela que foi uma das mais importantes Fábricas de Ferro do Império Português.
Este artigo é em honra daquelas pedras e dos homens que as ergueram e cuja fortuna foi esquecida.
A terminar, será também justo mencionar o apoio, que os livros de Carlos Medeiros «Figueiró dos Vinhos, Terra de Sonho», e o de António Arala Pinto «O Pinhal do Rei», me deram para a elaboração do presente artigo, para além de outras fontes que consultei, entre as quais a «Monografia do concelho de Figueiró dos Vinhos».
planta_das_ferrarias

5 Respostas a “Foz de Alge: as “ferrarias” do Império”

  1. Maria Gomes diz:

    Excelente pesquisa. Parabéns. Força

  2. joaquim marques diz:

    Excelente texto e pesquisa.

    jm

  3. Victor M B Gomes diz:

    Gostaria de saber o verdadeiro nome destas ferrarias, ou os diversos nomes se existiram, sou morador na Foz de Alge e acho este artigo uma verdadeira arte.

  4. Luís Menezes diz:

    Muitos parabéns pelo seu artigo. Vinha apenas perguntar-lhe se existe ou não a Memória manuscrita de António da Rocha Barbosa, e em caso afirmativo, onde posso consultá-la. O meu e-mail é luiscardosodemenezes@yahoo.com

    Antecipadamente agradeço-lhe a resposta, com os meus melhores cumprimentos,

    Luís Menezes

  5. José da Silva Ferreira diz:

    Senhor:

    Estive lá hoje.
    Há muitos anos que tencionava visitar “as ferrarias”.
    Venho muito triste: vi apenas pedras a tomarem banho na Foz de Alge”; nem uma simples placa a contar o que foi aquele local.

    Somos tão ricos e tão pobres,
    um sertanense.

Deixe o seu comentário