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O “velho” Bombeiro de 1936 e a Cadete-bombeiro de 2009

24 Novembro 2009

jose-canario_irisO “velho” Bombeiro de 1936 e a Cadete-bombeiro de 2009

A foto mostra duas gerações muito diferentes, contudo os cerca de 80 anos que separam estas duas personagens, demonstram e confirmam idêntica entrega à mesma causa comum: servir a comunidade através dos Bombeiros Voluntários, de forma generosa, abnegada e desinteressada.
O senhor que está na foto chama-se José de Oliveira Canário, tem 94 anos de idade e fez parte do primeiro e organizado Corpo Activo, da oficialmente instituída Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Figueiró dos Vinhos, no longínquo ano de 1936. Ele é o derradeiro elemento desse fantástico grupo que usou uma farda, ostentando ao peito o emblema da Corporação Figueiroense.
A jovem que está ao seu lado é a Íris Sofia Ferreira da Silva Lopes, tem 17 anos e é uma (recente) cadete dos Bombeiros Voluntários de Figueiró dos Vinhos, na senda de uma vocação familiar, uma vez que o pai, a mãe e o irmão, também se incluem no Corpo Activo desta prestigiada Associação Humanitária.
A foto foi tirada junto à primeira «bomba-de-incêndios» que chegou a Figueiró dos Vinhos durante a década de vinte do século passado. José Canário lembra-se bem dela, porque muitas foram as vezes que a puxou (ou empurrou!), suando e arquejando, com mais cinco camaradas, tantos os que eram necessários para a deslocar “rapidamente” até ao local do incêndio.
Foi com muita emoção que reviu o velho “veiculo”, agarrando-se a ele assim que lhe pôs a vista em cima, com uma lágrima ao canto do olho, revendo através desta peça de museu, as faces dos seus saudosos amigos e camaradas, desfiando nomes e momentos inesquecíveis e que marcaram a sua plena juventude. Não os vemos nesta foto mas foi como se estivessem estado todos ali, abraçados ao “velho” Bombeiro, na habitual algazarra de mais um retrato de grupo.
Muitas são as histórias que conta, muitos são os factos que revela e que confirma, possibilitando-nos contar a sua – a nossa – história colectiva, de um certo tempo e de uma certa relação singular com o nosso passado Figueiroense. Tempos incríveis e que recontarei na «História dos Bombeiros Voluntários de Figueiró dos Vinhos», que estou a escrever.
Hoje, os Bombeiros Voluntários encontram-se a “anos de luz”da época em que José Canário fez parte da Corporação. Actualmente, o voluntariado nos Bombeiros encontra uma Instituição onde os jovens podem colher oportunidades de formação em várias áreas, tornando-os homens e mulheres multifacetados, no conhecimento e na assimilação de competências técnicas extraordinárias e complexas, ministradas na Corporação, com o objectivo de servirem a comunidade com eficácia e profissionalismo crescentes, enriquecendo o voluntariado que professam e ao qual se devotam. Posso apontar que são ministrados nos Bombeiros Voluntários os seguintes Programas formativos: salvamento e desencarceramento; tripulantes de ambulância de transporte (e que inclui “primeiros-socorros”); incêndios urbanos e industriais; incêndios florestais; conhecimentos técnicos em electricidade, hidráulica e construção civil; busca e salvamento; ventilação táctica; segurança e protecção individual; técnicas de ambulância de socorro.
Nada ganham, a não ser o nosso orgulho e admiração quando os vemos passar, a que acrescento o enorme e infindável respeito que todos lhes devemos, quando eles avançam, de dia ou de noite, para as serras transformadas em braseiros ou nas ambulâncias em emergência para os hospitais. O serviço de saúde que actualmente prestam faz deles uma espécie de “anjos da guarda” da comunidade, e falo com conhecimento de causa, aquando do atropelamento que o meu sogro sofreu recentemente e pela forma pronta como foi assistido numa das ambulâncias, por elementos dos Bombeiros Figueiroenses com formação em socorro pré-hospitalar.
Quanto ao José Canário, este fica agarrado para sempre à memória desta Associação, assim como todos aqueles que briosamente a serviram nas últimas quase oito décadas.
Este artigo serve, sobretudo, para honrar todos aqueles que se dedicam – ou se dedicaram – ao voluntariado de forma desinteressada, altruísta e abnegada, sobretudo os jovens, que generosamente partilham as suas vidas com valores que lhes exigem sacrifícios mas que os enriquecem em carácter e em formação pessoal. Para além disso, e neste caso, os Bombeiros Voluntários nada ganham, no entanto é a eles que tudo devemos.

Boletim: «Figueiró dos Vinhos – Estancia de Turismo». Edições de 1933 e 1938

09 Novembro 2009

boletim2A Biblioteca Municipal Simões D’Almeida (Tio) acaba de disponibilizar através do seu site (http://www.bmfigueirodosvinhos.com.pt/) mais dois interessantes documentos integrados no “Fundo Local” que está a construir. Trata-se de uma importante publicação da responsabilidade da Câmara Municipal, levada a cabo nos anos 30 do século passado, e que foi editada aquando da elevação de Figueiró dos Vinhos a estância de turismo nacional, por decreto estatal em 1928. Assim, estão já disponíveis as duas edições – 1933 e 1938 – desse fantástico boletim, que foi pioneiro de propaganda turística de um concelho do interior do país, que almejava dar-se a conhecer a nível regional e nacional, e que conseguiu vingar junto do então ainda incipiente turismo nacional. Foi graças a este bem elaborado “boletim”, que Figueiró dos Vinhos conseguiu publicidade “fora de portas”, destacando-se na região e alcançando uma imagem de vanguarda a nível nacional. São publicações bastante raras, recheadas de fotografias da época e, por conseguinte, uma importante fonte de informação para todos aqueles que querem conhecer a história do concelho de Figueiró dos Vinhos, que já foi denominado de «Sintra do Norte».
Já anteriormente a Biblioteca Municipal de Figueiró dos Vinhos tinha levado a efeito a digitalização de outros documentos importantes, tais como: «Doze anos de administração municipal» do Dr. Manuel Simões Barreiros, editado em 1943; «Figueiró dos Vinhos e o seu concelho» nº único, editado em Março de 1968; «Monografia de Figueiró dos Vinhos», editada em 2004; «Turismo: revista de arte, paisagem e costumes portugueses», nº10, editada em 1958. Todos estas edições encontram-se disponíveis no site da Biblioteca, ao alcance de um simples “click” e totalmente disponíveis para consulta e download. Todas estas publicações são potencialmente úteis a investigadores, professores, estudantes e, de um modo geral, a todo o publico interessado em rever partes da história Figueiroense.

Os (nossos) antigos senhores dos oceanos

14 Julho 2009

funchal_1Entre as décadas de 40 a 70 do século XX, os oceanos foram sulcados por grandes paquetes que ostentavam pavilhão e nome português. Duas grandes companhias rivalizavam no prestígio, no conforto, no exotismo, na elegância e na vanguarda das viagens de carreira e de cruzeiro pelos mares fora, a Companhia Nacional de Navegação (CNN) e a Companhia Colonial de Navegação (CCN). Só por si, a publicidade que ambas as Companhias faziam em torno dos seus navios, fazia sonhar milhares de portugueses, por terras longínquas e exóticas que ansiavam demandar a bordo de um desses paquetes.imperio_
Em conversa com amigos (e inclusivamente com o meu sogro) que fizeram viagens entre a metrópole e as ex-colónias portuguesas nalguns desses navios, sobressai um tom nostálgico, que resguarda o orgulho das suas experiências transatlânticas a bordo destes “senhores” dos oceanos, numa época que consideram de ouro para a marinha mercante portuguesa contemporânea.
Todavia, descobri com mágoa, que todos esses barcos, à excepção de um (o «Funchal»), já foram desmantelados em terras longínquas, sob as mãos e os maçaricos de sucateiros estrangeiros. infante_
Mas mesmo desaparecidos continuam a fazer parte da memória individual de milhares de portugueses, para além de concorrerem para um pedaço da nossa história contemporânea, enquanto símbolos materiais de uma época e de uma conjuntura nacional que os motivou e gerou.
Durante a minha investigação acerca destes barcos, reuni dezenas de fotos (inclusivamente dos seus interiores), dezenas de páginas de textos com o seu historial, dezenas de fichas com os seus desenhos, reproduções de bilhetes de viagem e de menus das refeições a bordo, programas e instruções de viagem, horários das rotas marítimas e dos portos que frequentavam, panfletos publicitários, filmes promocionais e históricos, filmes “caseiros” feitos a bordo (com as emblemáticas máquinas de filmar “Super 8”), fotos, depoimentos e recordações de antigos passageiros, “funcionários” e marinheiros.mocambique_
À medida que avançava na minha investigação, ressuscitando cada um desses barcos, a minha pesquisa transformou-se fácilmente numa obsessão, numa ânsia de os “colocar” novamente a flutuar nos oceanos, porque descobri fascinado e surpreendido, que os meus amigos e as pessoas com quem falei acerca destes navios, não tinham exagerado na admiração que votavam em honra destes transatlânticos portugueses e que tão bem conheceram.
Esta incrível frota de navios foi-se constituindo depois da 2ª guerra mundial, quando Portugal tomou consciência que necessitava de uma marinha mercante que assegurasse ligações constantes e permanentes entre o Império ultramarino e a metrópole, assegurando tanto o transporte rápido de passageiros como de mercadorias (a criação de uma companhia aérea do Estado – a TAP – inseria-se no mesmo programa, com o objectivo de manter uma ligação regular com Angola e Moçambique).patria_
Assim, em 1945 e por despacho governamental, ordenava-se a renovação da frota da nossa marinha mercante, prevendo-se a construção de 70 navios, entre os quais 9 grandes paquetes.
Entretanto, no início da década de 60, a marinha mercante portuguesa atingia o seu apogeu, contando com uma frota admirável e onde se inseriam 22 paquetes, entre eles, o «Santa Maria», o «Vera Cruz», o «Príncipe Perfeito» e o «Infante D. Henrique», cada um com a capacidade de transportar 1000 passageiros.
Das duas companhias de navegação, a CNN – Companhia Nacional de Navegação – era a mais antiga, fundada em 1871, tendo-se transformado através dos tempos numa das mais importantes empresas de navegação portuguesas de sempre. Iniciou a sua actividade com os paquetes “Portugal” e “Angola”. Em 1950 passa a integrar o grupo empresarial CUF e em 1972 torna-se no maior armador nacional com cerca de 40 navios. Em 1975 foi nacionalizada e inicia um período de decadência com a perda dos seus mercados tradicionais, arruinando-se (em apenas 10 anos) até á sua liquidação definitiva.niassa_
A CCN – Companhia Colonial de Navegação – foi fundada em 1922 e iniciou a sua actividade com as carreiras de Angola, Cabo Verde e Guiné, assegurando durante os anos 60 os transportes marítimos entre a metrópole e as nossas colónias ultramarinas. Em 1974 funde-se com a Empresa Insulana de Navegação (EIN) e que daria origem à Companhia Portuguesa de Transportes Marítimos (CPTM). Entre 1922 e 1974, possuiu 14 navios, entre os quais o «Infante D. Henrique»; «o Vera Cruz» e o «Guiné».
Há no entanto uma nuvem negra que ensombra a bela história de alguns destes navios. A partir de 1961, muitos deles começaram a ser requisitados para o transporte de tropas e material de guerra, ajudando a manter o esforço da guerra colonial-africana até 1974. Destes, o navio “Niassa” seria o inaugurador destes transportes bélicos, contudo seria o “Vera Cruz” que realizaria mais viagens nesse sentido, “chegando a realizar 13 num só ano”. Contas feitas, entre 1961 e 1974, 90% da carga e 80% dos militares que foram enviados da metrópole para a “guerra do ultramar” foram transportados nestes navios de sonho. Muitos destes passageiros fardados quando embarcaram em Lisboa, não sabiam que iriam usufruir apenas da viagem de ida, nunca regressando, deixando no cais pais, irmãos, noivas, esposas e filhos lavados em lágrimas, num paradoxo e num contraste atroz e injusto, com as partidas entusiásticas que outros faziam para os cruzeiros e viagens turísticas, a bordo dos mesmos navios. principe-perfeito_
Todavia, este artigo é para relembrar uma época em que não nos quedámos perante o nosso destino e vocação histórica, assumindo a nossa feição atlântica e aceitando o mar como grande recurso económico e que, de tempos a tempos, teimamos em esquecer e subestimar, deixando para os outros uma coisa que podia ser mais nossa, como quando os oceanos eram, naqueles tempos, continuamente cruzados por paquetes de um país, que ainda ousa em arvorar-se como uma “nação de marinheiros”.
Concluo evocando os nomes destes transatlânticos: Paquetes da Companhia Colonial de Navegação (CCN): Navios: «Colonial», «Vera Cruz», «Pátria», «Guiné», «Ganda», «Império», «Mouzinho», «Serpa Pinto», «Santa Maria», «Uige» e «Infante D. Henrique». Paquetes da Companhia Nacional de Navegação (CNN): Navios: «Moçambique», «Niassa (I e II)», «Quanza», «Angola», «Príncipe Perfeito», «Índia» e «Timor». Alguns destes paquetes tiveram várias versões, casos do «Niassa», «Moçambique», «Guiné» e «Angola». Outros, quando foram vendidos após 1974, tiveram outros nomes, como foi o caso do «Infante D. Henrique», que mudou de nome 3 vezes, para «Vasco da Gama», «Seawind Crown» e por último «Barcelona» (com bandeira da Geórgia), tendo sido desmantelado na China em 2004. Também o «Príncipe Perfeito», lançado à água em 1960 (e que foi considerado o mais elegante navio de passageiros português, com uma estética perfeita, qualquer que fosse o ângulo de observação) teve mais 4 nomes, equivalente a 4 transacções que sofreu: «Al Hasa», «Fairsky», «Vera» e «Marianna 9», tendo sido desmantelado na Índia em 2001. O «Niassa II» foi desmantelado em Espanha em 1979; o «Índia» na Formosa, em 1977; o «Timor», na China em 1984; o «Angola» em 1974; o «Uige» em 1980. Ainda na Formosa seriam tambem desmantelados o «Santa Maria» e o «Vera Cruz», ambos em 1973. O último sobrevivente da antiga frota de navios de passageiros portugueses (que em finais da década de 60 chegou a contar com 26 paquetes em actividade) é o «Funchal», que continua ainda no activo.
Carreiras que estes navios faziam: África Ocidental e Oriental, Brasil, América Central, Europa (Mediterrâneo), e Oriente (Singapura, Hong Kong e Dili).santa-maria_
Em meados da década de setenta, com o aumento do número de passageiros a preferirem a utilização do avião para viajarem, em detrimento dos paquetes, estes vão perdendo importância como navios de carreira. Presentemente são utilizados preferencialmente em cruzeiros e viagens turísticas. Contudo e apesar disso, aceitei relembrar esta belíssima colecção de barcos portugueses, sobretudo, com o intuito de reavivar a memória dos muitos que os utilizaram, numa certa época, numa certa altura das suas vidas e que indelevelmente a eles ficaram ligados.vera-cruz_

Há 80 anos, um sonho: «Figueiró dos Vinhos – Estância de Turismo»

13 Julho 2009

* FESTAS DE S. JOÃO DE 1929 *

programa_festasHá 80 anos atrás, em Junho de 1929, Figueiró dos Vinhos fervia de expectativa e de entusiasmo perante as estrondosas festas de S. João, que eram anunciadas aos sete ventos concelhios com pompa e circunstancia e sob o patrocínio de quatro entidades: Câmara Municipal, Comissão de Turismo / Associação Comercial e Industrial e Comissão das Festas Religiosas.
«O povo de Figueiró, prepara-se com galhardia, a fim de receber as ilustres Autoridades do nosso distrito, expressamente convidadas pela Câmara Municipal e Comissão de Turismo para assistirem às nossas festas do S. João que terão lugar nos próximos dias 23 e 24», lia-se na “Regeneração” cerca de duas semanas antes dos festejos.
Prometiam-se festas dum brilho nunca visto, com vistosas ornamentações, inéditas iluminações eléctricas, bandas de música, fogos de artificio dos primeiros pirotécnicos do país, gyncana de automóveis, batalha de flores, danças populares e interessantes festas desportivas, etc, e tudo isto num ano em que o comércio da vila e a economia em geral atravessavam um momento difícil.
A “Regeneração” incitava ao bairrismo e à união de todos os figueiroenses que se orgulhavam da sua “Sintra do Norte”. Para as festas, para além das autoridades administrativas do distrito, foi igualmente convidada toda a Imprensa de Leiria, para assistir a este vibrante e intenso espírito bairrista, fruto da união «dos valores do comércio, da indústria, das forças vivas e de todos quantos ambicionam garantir a Figueiró dos Vinhos um nome alevantado».
O ponto alto das festas era a inauguração do “Jardim Público” (o Jardim Parque seria inaugurado no ano seguinte) e o lançamento da primeira pedra para a construção das Casas dos Magistrados (hoje “Casa da Juventude”). Para além destes dois acontecimentos primordiais, reavivava-se também a inauguração da luz eléctrica na vila «levada a efeito pelos homens desta situação» (na pequena central da Lapa da Moura), inaugurada cerca de três meses antes (a 31 de Março de 1929), bem como a construção da ponte das Bairradas, que representava a ligação com o distrito de Castelo Branco.
Encarregou-se a Filarmónica Figueiroense de iniciar as festas no Domingo, dia 23, saudando a vila às primeiras horas da manhã, “com um esplêndido passo dobrado”. Seguidamente comungaram 143 crianças, a quem foi tambem servido um “jantar”por “senhoras elegantes e gentis”. Entretanto, chegavam os atletas e a Filarmónica de Pombal, que desfilaram conjuntamente com a Filarmónica Figueiroense pelas ruas da vila, culminando com um esplendoroso concerto no coreto. À tarde foi a vez das provas desportivas: lançamento do disco, lançamento do peso, corridas de 80m e de 150m, “luta de tracção”e futebol (tendo vencido a equipa do Sporting Clube de Pombal, por 2-1, a quem foi entregue um troféu de prata). O campo de jogos esteve sempre apinhado de gente, dada a novidade de algumas modalidades desportivas ali disputadas. Quando caiu a noite, as ruas engalanadas brilharam etereamente com a luz eléctrica, sobretudo o Ramal (Av. Padre Diogo Vasconcelos) que, para o povo, apresentava um aspecto deslumbrante e mágico. O Sr. João Luis Nunes do Carapinhal encarregou-se do fogo de artifício, entretendo a população, que dançou e cantou até de madrugada. Na segunda-feira, 24 de Junho, as comemorações revestiram um ar mais solene, dada a presença das autoridades e personalidades distritais. Coube à Filarmónica Pombalense acordar a vila logo pela madrugada (se é que alguém dormiu nessa noite). Figueiró amanhecia nesse 24 de Junho de 1929, orgulhoso e revestido com um aspecto citadino, com a chegada de muitos carros, camionetas e “camions”, carregadas de forasteiros que não queriam perder os festejos figueiroenses. Entretanto, na igreja matriz decorria a festa religiosa a S. João. No púlpito, o Padre António Inglês, proferia um eloquente e brilhante sermão, com a sua voz poderosa e sonante, comovendo toda a assistência. Depois do almoço, às 15h, formou-se um cortejo para esperar o Governador Civil do Distrito de Leiria e demais autoridades que o acompanhavam. Eis que chegam os ilustres convidados e as duas filarmónicas tocam “A Portuguesa”, enquanto o cortejo, num mar de gente que vai ovacionando os ilustres convidados, se encaminha a pé e a custo para a Câmara Municipal. No salão nobre, o Presidente da Câmara, Dr. Mário Guimarães Cid das Neves e Castro, faz o elogio aos convidados, ao qual o Governador Civil agradece. Este, no seu discurso, aproveita também para elogiar uma personalidade Figueiroense, a quem, segundo ele, também se deviam as presentes obras: o Dr. José Martinho Simões e que nessa altura já se destacava na nova e emergente politica nacional. Por toda a sala reboam salvas de palmas, ovações, “vivas” e aclamações entusiásticas. Seguidamente procederam-se às inaugurações, iniciando-se estas pelo “Jardim Público”, onde o Dr. Manuel Simões Barreiros (Presidente da Comissão de Iniciativa) convida o Governador Civil “a soltar o laço que vedava aquele elegante recinto”. Já no Barreiro (actual Rua Major Neutel Abreu) o ilustre convidado lança a primeira pedra para a construção das Casas dos Magistrados.jardim-publico_1_jpeg
De tarde e depois da procissão seguiu-se a “batalha das flores”, com um corso automobilístico que percorreu o Ramal, provocando uma intensa chuva floral multicolorida, despertando um entusiasmo delirante na multidão espectadora. O carro mais bem enfeitado e vencedor deste festival foi o de Martim Luiz Garcia, que alegorizava um moinho com três jovens moleirinhas “capazes de pôr à roda a moleirinha de qualquer mortal”. Seguidamente realizou-se a Gymcana, que tinha a particularidade das viaturas serem conduzidas por senhoras, prova que foi presenciada e aplaudida “por milhares e milhares de pessoas”. O primeiro prémio coube ao carro conduzido pela “mademoiselle” Maria Luísa, o segundo prémio foi para um casal de condutores de Alvaiázere e o terceiro para uma jovem de Pombal e cujo co-piloto era de Leiria. O júri era constituído pelo Delegado da Comarca e por personalidades de Castanheira de Pêra e Pedrogão Grande. batalha-flores_2_jpeg
Nesta segunda-feira, apesar das iluminações terem sido prejudicadas com a ruptura do dique da Barragem da Lapa da Moura, que não aguentou tanta pressão (mantendo-se as iluminações à moda do Minho), os festejos fecharam com um grande banquete para 50 convidados, iniciando-se por volta das 21h e só terminando madrugada dentro, culminando com um esplendoroso fogo de artificio de Viana do Castelo. Para além dos convidados ilustres, é referida a presença de algumas personalidades figueiroenses e que estiveram igualmente nesse banquete, ou na “Comissão de Honra” dos festejos, naquele ano longínquo de 1929. Homens que marcaram uma época, frutos do seu tempo e da conjuntura histórica que então se vivia mas que muito contribuíram para concretizar os sonhos de um concelho que queria “viver, marchar e progredir”, vencendo os incrédulos e os cépticos, que ainda hoje não acreditam na dinâmica das sociedades. Homens estes que representavam uma nova filosofia de exercício do poder, de um novo poder que já se erguia no horizonte concelhio, à semelhança com o que acontecia a nível nacional. Homens de partidos diferentes, homens de condição social diversa mas que se uniam em torno de vontades firmes e que marcariam a memória e a identidade Figueiroense durante as décadas seguintes, entre os quais: Dr. Mário Guimarães Cid das Neves e Castro (Presidente da Câmara), José Manuel Godinho (vice-Presidente da Câmara), Dr. José Martinho Simões (na altura Director Geral do Ministério do Interior), Dr. Manuel Simões Barreiros (Presidente da Comissão de Iniciativa e futuro presidente da Câmara), Padre António Inglês, Dr. Manuel de Vasconcelos (ex-Presidente da Câmara e responsável pela construção da estrada distrital entre Pombal e Figueiró dos Vinhos), Dr. Diniz de Carvalho, Tenente Carlos Rodrigues Manata (futuro vice-Presidente da Câmara e Administrador do concelho), Manuel dos Santos Abreu (Administrador do Concelho e que viria a ser tambem vereador), Francisco Rodrigues Ferreira (Comissão de Iniciativa e Associação Comercial), Joaquim Matos Pinto, António Alves Tomaz Agria, João António Semedo, José Pedro dos Santos, Joaquim Estêvão Rodrigues, João Luiz Júnior (proprietário do Hotel Comercial da vila), Antero Simões Barreiros, Joaquim José da Conceição Júnior, Augusto Severino, entre outros nomes que vincaram a história do nosso concelho nestes tempos em que a politica se utilizava num «combate pelo conforto do povo, pelos interesses do concelho, pelas aspirações, progresso e prosperidade da linda Cintra do Norte do distrito de Leiria», com todos eles sentados à mesma mesa, há oitenta anos atrás, num simbólico “S. João”, padroeiro de Figueiró dos Vinhos.cartaz_festas2
(Citações e fonte documental: Jornal «A Regeneração», Maio e Junho de 1929. Fotos: arquivo pessoal do autor e Jornal “A Regeneração”).

Donos da memória: 0 /// Biblioteca Municipal: 2

07 Maio 2009

Os donos da memória… tesouro2
Há quem pense ser dono da nossa memória colectiva, pela quantidade de elementos patrimoniais que detêm “à sua guarda”. Coleccionadores particulares que têm de tudo um pouco: livros, jornais, correspondência, postais, fotografias, pintura, escultura, azulejaria, arte sacra e por aí fora, formando pequenas galerias arquivísticas e musealizadas e que na maior parte não passam de meras “galerias de curiosidades”, que utilizam para seu usufruto e que raramente cedem a quem quer que seja, independentemente do objectivo, muitas vezes nobre, que acompanha o pedido de empréstimo, com intuitos académicos, de investigação e de consulta documental. Em suma, é quase sempre difícil conseguir alguma coisa de alguns coleccionadores privados.
Não questiono os seus direitos sobre o património que detêm junto de si, nem sequer contesto o direito que têm em cedê-lo ou não, apesar de saberem que, nalguns casos, a “cedência” passaria apenas por uma simples consulta para fins meritoriamente académicos. Pois muitos deles nem isso permitem.foto_cab-peao
O que eu questiono é o despeito e a soberba com que “se agarram” a esses objectos, como se todo o património que reúnem lá em casa lhes conferisse um estatuto especial, acima do natural interesse histórico e colectivo. São meros donos de objectos (valiosos), a que não dão uso nem utilidade, a não ser para o seu ego, que “enriquece” em vaidade para consumo próprio. Todavia, têm que ter consciência de duas coisas: que não se podem julgar proprietários de pedaços da história e que o seu método para a preservar, mantém prisioneiros valiosos testemunhos, que dela emanam, entre as paredes dos seus escritórios privados.
Felizmente, que as novas tecnologias, aliadas à competência de algumas instituições públicas, vão esvaziando pouco a pouco a “soberba”, com que alguns coleccionadores particulares orientam, gerem e administram as colecções que detêm. carnaval73
Aponto o grande exemplo da Biblioteca Municipal de Figueiró dos Vinhos, que tem levado a cabo um trabalho meritório de investigação, pesquisa, compilação e divulgação de algum Património Figueiroense, colocando-o livremente à disposição de todos e sem restrições de espécie alguma. Refiro-me à belíssima colecção que reúne TODA a Imprensa escrita que se publicou no concelho de Figueiró dos Vinhos, desde finais do século XIX até à actualidade, num total de 33 títulos Jornalísticos, que representam centenas de números editados e que totalizam 22 000 páginas digitalizadas. Eu próprio tenho-me valido desse espólio documental (fabuloso) tanto para os meus trabalhos académicos e pessoais, como para saciar simplesmente a sede de recordar coisas do nosso passado colectivo. Isto é, há um retorno concreto e recíproco, entre uma Instituição Pública (neste caso a Biblioteca Municipal de Figueiró dos Vinhos) e os seus utentes, num intercâmbio que capitaliza o serviço que essa Instituição presta, servindo a generalidade da comunidade de forma altruísta, obedecendo ao compromisso de divulgar (ao máximo) o acesso à leitura e à cultura e, simultaneamente, contribuir generosamente para os estudos da história local e regional, em linha com um projecto ainda mais ambicioso: construir um imprescindível e necessário «Fundo Local», que reúna um grande espólio documental, de tipologia diversificada e que sirva estudantes, investigadores e os utentes em geral.foto_mercado
Outra iniciativa de louvar por parte da Biblioteca Municipal, é o enorme espólio fotográfico que está neste momento a reunir e a compilar, com o apoio de entidades públicas e privadas e, principalmente, de muitos particulares, que não hesitando em associar-se de forma generosa a esta iniciativa, colocaram à disposição da Biblioteca Municipal centenas de fotos, que cobrem todo o século XX figueiroense e cuja digitalização tem enriquecido, constante e diariamente, um “banco” valioso de imagens, que ilustram memórias e identidades da nossa história concelhia e que podem ser consultadas na secção (designada «Figueiró em Imagens») da página web da Biblioteca e cujo link associei a este blogue.

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Concluindo, há uma grande diferença de atitudes, entre aqueles que persistem em reunir, quase só para si, todo um património que é do interesse colectivo, e a acção da Biblioteca Municipal: os primeiros, apesar dos seus esforços, continuam a consentir que grande parte do nosso passado colectivo continue “amnésico” ou “anónimo”, porque só eles continuam a ser detentores dos seus “segredos”, a segunda, tem a sábia ousadia de arrancar esse passado das entranhas que o mantinham em coma, esquecido e subestimado, trazendo-o para um espaço comum e público, até junto da nossa memória colectiva, permitindo-nos recordar aquilo que fomos, para entender aquilo que somos, como referência ligadora e dinâmica, em direcção ao futuro.regeneracao
Quando temos uma Biblioteca Municipal, com a envergadura da de Figueiró dos Vinhos, há sempre a opção de, prioritariamente, concorrermos para a sua fortuna.

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Talvez tenha chegado a hora de começarmos a pensar conjuntamente e menos individualmente.

Da Castanheira de Figueiró às trincheiras da Flandres: o Cesário

30 Abril 2009

cesario_franciscoQuando em 4 de Abril, do longínquo ano de 1917, as primeiras tropas portuguesas chegam às trincheiras da frente de batalha, na Grande Guerra de 1914-1918, deparam-se com amplos territórios nevoentos e chuvosos, cheios de humidade e lama, infestados de ratazanas, a cheirarem a morte constante, desprovidos de árvores, arrasados pelas metralhadoras e pelas granadas dos canhões. São sobretudo lavradores, pescadores, artesãos e operários, transformados em soldados, quase todos analfabetos, jovens serranos que são enviados para um inferno de lama, frio, chumbo e fogo e onde o ar cheirava permanentemente a pólvora e a gás mostarda. (Nesse mesmo dia, seria morto o primeiro soldado português na frente ocidental).
Cesário Francisco, Soldado nº 83, da 3ª Brigada de Infantaria, do 4º Batalhão, do Regimento de Infantaria nº 15 e da 1ª Bataria de Artilharia, embarcou em Lisboa no dia 15 de Março de 1917, rumo à Flandres, conjuntamente com mais alguns milhares de compatriotas seus, integrados no 2º contingente da 1ª Divisão do Corpo Expedicionário Português (CEP), destinados a ocupar um sector na «frente» de combate.
medalhas_2De referir, que a primeira morte ocorrida entre os soldados do concelho de Figueiró dos Vinhos, foi a de João Simões, filho de Manuel Simões, da Sigoeira, freguesia de Aguda. Para além deste militar, morreram pelo menos mais 3 militares do nosso concelho e que constam nos arquivos do CEP, entre os quais: o 2º sargento Manuel Francisco da Silva (que já tinha sido ferido duas vezes em combate) e o soldado Vitorino Rodrigues Ferreira (que faleceu de doença adquirida no campo de batalha), ambos da freguesia de Figueiró dos Vinhos.
Nesse dia 15 de Março de 1917, quando o barco que leva Cesário Francisco a bordo larga do Cais de Alcântara, rumo às trincheiras “das Franças”, não leva somente humildes serranos fardados, leva também o espírito e a alma lusas, de um povo habituado a encaixar os desencontros do seu destino mas que sempre recusou separar-se da sua identidade genuína. Na bagagem seguia também, a harmónica, a “concertina”, a guitarra, os “ferrinhos” e o pífaro, lado a lado com a máscara de gás, o cantil, as cartucheiras e a espingarda.
O nosso herói era natural do lugar da Castanheira de Figueiró, onde nasceu a 7 de Maio de 1892. Possuía um espírito alegre e descontraído, irradiava simpatia e, ao que parece, tinha também uma voz belíssima para cantar o fado. Era por todos respeitado e fácilmente congregava simpatia à sua volta. Quando foi chamado para o dever das armas já era casado, com Hermínia da Conceição.
Já na Flandres, e em vésperas de Santo António, no dia 12 de Julho de 1917, o seu batalhão foi colocado de reserva em Paradis, a cerca de 3 Kms da linha da frente. Nesse local, com guerra ou sem guerra, os portugueses decidiram montar um arraial para comemorar o santo popular, com a única condição de não se fazer a tradicional fogueira, por motivos óbvios. Os very lights, que riscavam o céu nocturno, faziam lembrar os foguetes dos dias de festa das suas aldeias. Os morteiros, que ao longe iam rebentando, pareciam substituir o troar do fogo preso, em volta da capela. Desta forma, era como se o cenário estivesse completo. Música é que não faltava para animar o arraial popular, que ia ficando composto, inclusivamente com militares e oficiais doutras unidades e nacionalidades, que se iam chegando, surpreendidos com a “audácia” dos portugueses, que não hesitavam em montar uma festarola a 3 Kms da frente de batalha. Não lembrava ao diabo uma coisa destas! Uma guitarra, um harmónio e uma flauta compunham a orquestra. A certa altura, calou-se o harmónio e a flauta para dar lugar ao “choradinho” da guitarra, que clamava por um fado, saciando o apelo forte das saudades das serranias beirãs, com o timbre metálico das suas cordas, que penetrava forte nas trincheiras, numa melopeia triste, ecoando por terras da Flandres. Logo surgiu uma plêiade de cantadores de fado, uns mais desafinados que outros, até que, para resolver o problema, se lançou a ideia de um concurso para apurar o melhor fadista. Sem demora, constitui-se logo ali um júri e juntou-se dinheiro para os vencedores do espontâneo “festival”.
No final, restavam somente 3 ou 4 concorrentes mais afoitos. É nesta altura que aparece o nosso Cesário Francisco: «Homem alto, esgrouviado, moreno, olhos rasgados, tipo de inteligente». Militar cumpridor, pacato, discreto e não dado a protagonismos mas com uma voz que possuía o segredo certo da entoação e que fazia aflorar nos espíritos a seiva da alma lusitana. Enquanto ele cantava, o campo ficou em silêncio, murmurava-se para não perturbar a inspiração do exímio fadista, que lembrava a pátria longínqua e a alma que todos carregavam. Desta forma, Cesário teve o seu momento de fama naquela véspera de Santo António, numa noite de guerra, perto das trincheiras da morte. Depois dessa noite, raros foram aqueles que se esqueceram do fadista do 4º Batalhão. Antes o tivessem esquecido!
Cerca de um mês depois, em 24 de Agosto, a primeira linha sofria um ataque feroz dos alemães, transformando os campos num inferno de fuzilaria, de metralha e de bombardeamento. À posição onde se encontrava o nosso Cesário Francisco, começaram a chegar vagas, cada vez maiores, de feridos e estropiados, da fulminante ofensiva que se desenrolava a cerca de 3 Kms dali. O alto comando aliado precisava de enviar uma mensagem, muito urgente, para a linha da frente, necessitando de um «voluntário» para o espinhoso recado. O comandante da Companhia de Cesário Francisco olha em redor, à procura do homem certo e que estivesse à altura dessa terrível missão. Ora, desde a véspera de Santo António, que este oficial nunca mais esquecera o rosto do militar fadista, que tanto o comovera, e que até o obrigara a disfarçar um pigarreado de comoção, que lhe “entalara” a garganta. Estava decidido, seria ele a transportar a mensagem. Chama-o, entrega-lhe um papel e diz-lhe: «Vai levar isto lá abaixo!». Militar exemplar, Cesário recebe o papel sem retorquir ou pestanejar e presta-se a cumprir a ordem.
“Ir lá abaixo” significava passar por uma série de trincheiras, constantemente batidas pelas metralhadoras alemãs, pelo zumbido dos morteiros e por balas de todos os calibres. Algumas trincheiras estavam obstruídas, obrigando-o a ir de volta, a descoberto pelo campo, com os morteiros a rebentarem em redor dele. Um rebentamento de um obus projecta-o no chão mas ele levanta-se de imediato, sacudindo a terra com que a força de choque o cobrira, e avança. As balas zumbem à sua volta sem lhe tocar – talvez algum santo o proteja?! – diziam os seus camaradas. Entretanto, quando está prestes a alcançar a primeira linha, ouve-se um silvo agudo e um morteiro estoira mesmo ao seu lado. Desta vez, Cesário Francisco é projectado violentamente por terra e não se levanta. Contudo e apesar de muito ferido, consegue erguer um braço, agitando a mão freneticamente, brandindo o papel, gritando: «Eh! Rapazes!…Uma ordem lá de cima!». Rápidamente, é recolhido por maqueiros enviados da trincheira, constatando-se que tem grande parte do corpo golpeado, com muitos e graves ferimentos.
Enquanto recolheu ao hospital, para ser tratado dos 25 ferimentos que recebera, na sua terra, em Castanheira de Figueiró, chega a noticia que ele desaparecera em combate. A esposa chegou a pôr luto por ele e a angustia tomou conta da família durante mais de um ano.
medalhas_1Da ficha deste militar, que consegui apurar nos arquivos do CEP, consta o seguinte: «Ferido em combate em 24 de Agosto de 1917, dia em que baixou ao H.C.S. nº1 e evacuado em 4 de Setembro para o H.C. 32. Condecorado com a Cruz de Guerra em 5 de Novembro. Teve alta em 27 de Dezembro. Julgado apto para os serviços auxiliares do exército em sessão de 29 do mesmo mês. Seguiu para o D.A.C. em 13 de Janeiro de 1918. Louvado por bravura e dedicação com que cumpriu os seus deveres, transmitindo ordens e comunicações debaixo de intenso bombardeamento do inimigo.»
Cesário Francisco entrara para a história.
O nosso herói desembarca em Lisboa em Maio de 1918, ostentando no peito fardado, 4 medalhas: a cruz de guerra; a medalha da vitória; a medalha de comportamento exemplar e a medalha de campanha da 1ª Guerra Mundial. Recentemente, em acto oficial, os seus herdeiros decidiram oferecer estas medalhas à Câmara Municipal, para que sejam expostas no futuro Museu Municipal, bem como um raro exemplar do livro de Quirino Monteiro e Melo Vieira– «Gambúzios», onde são descritos os feitos heróicos de alguns soldados da Grande Guerra, entre eles, o de Cesário Francisco. O gesto dos herdeiros deste bravo militar, constitui uma lição a ter em conta: que ninguém é dono da memória colectiva, nem dos seus testemunhos, que devem ser partilhados no presente, a pensar nas gerações vindouras, por todos os que valorizam o património, como fonte de conhecimento e de entendimento do nosso passado comum, porque a história não é propriedade de ninguém, nem tão pouco apanágio de vaidades pessoais.
Quando Cesário Francisco, deitado na maca, dorido e ensanguentado, foi interpelado pelo comandante de batalhão, que o animava realçando a sua coragem, somente se preocupou com uma coisa, respondendo ao oficial: «É verdade meu comandante, mas o que mais me rala é que não torno a cantar o fado!» …
(Este artigo foi apoiado no livro acima citado, «Gambúzios», e em documentação obtida no Arquivo Histórico Militar).

“História do Municipalismo Figueiroense: Coordenadas Politicas e Sócio –Culturais de 1910 a 2005”

15 Outubro 2008

1926Desde 1910 até 2005 quem foram os Presidentes da Câmara Municipal do Concelho de Figueiró dos Vinhos, quem os coadjuvou, e quem fez parte do seu executivo? Como era composta a estrutura governativa concelhia e de que forma evoluiu?
Afinal, desde 1910 até 2005, quem foram os artesãos na oficina concelhia? Que programas politicos e socios-culturais produziram e que ferramentas utilizaram para os pôr em prática?
Desta forma, pretende-se desenvolver um Projecto sobre a História do Municipalismo Figueiroense, a fim de se entender a lógica politica e sócio-cultural do nosso Concelho, enquanto atravessava a 1ª República, o corporativismo municipal no Estado Novo, o jovem poder local democrático saído do 25 de Abril e o desafio Europeu dos anos oitenta até 2005.
vale_do_rio_1963Como se estruturou o poder; como funcionou a lógica dos poderes instituídos em relação às identidades comunitárias, e que estratégias usaram na materialização dos horizontes urbanísticos; qual foi o relacionamento que os poderes municipais mantiveram com os actores sociais concelhios, com as elites locais e os contra-poderes, com o associativismo e com os actores económicos, culturais e políticos; que legado cultural e patrimonial nos deixaram, como reflexos da sua capacidade criativa e inovadora??? Quais as suas obras mais duradoiras e que se perpetuam no tempo?
Isto é, referenciar a História do nosso Concelho através dos seus actores políticos constituídos como poderes, e analisar o seu potencial de decisão na construção do concelho durante a caminhada do Estado Republicano.

O «Casulo» – Capitulo III – Terceira vida (1982 – 2008)

30 Setembro 2008

casulo_alcado_nascenteNa sua terceira“vida”, o “Casulo” torna-se hospedeiro de uma Associação – o Centro Cultural de Figueiró dos Vinhos – que “acolhe” generosamente e à qual oferece todo o seu poder simbólico. Acreditou que podia reerguer-se pouco a pouco, sair definitivamente do anonimato patrimonial e voltar ao convíio das gentes Figueiroenses. Voltava a sonhar com uma nova Primavera existencial. Contudo, esta renascida Primavera Cultural, dura somente cerca de uma década e o “Casulo” voltaria a enfrentar um longo e penoso Inverno cultural e patrimonial.
centro_cultural_de_figueiro_dos_vinhosEm 27 de Fevereiro de 1982, um grupo de Figueiroenses reúne-se no Salão Nobre da Câmara Municipal “com o fim de dar vida a um velho sonho da população do concelho”: fundar um Centro Cultural na Vila de Figueiró dos Vinhos. A iniciativa congrega pessoas de todos os quadrantes. A uni-las, um grande e voluntarioso entusiasmo. Nesse mesmo dia, elegem os primeiros corpos sociais da Associação, com o orgulho e o mérito de serem os fundadores de uma causa comum: Marta Forte G.Branco, João Rodrigues, Luis Filipe Lopes, Carlos Medeiros, Fernando Lopes, António Lacerda, Fernando Santos Conceição, Manuel Alves da Piedade, Padre Manuel Ventura, Fernando G. Branco e Fernando Pires, são alguns dos nomes que estiveram na vanguarda desta iniciativa. Contudo, faltava-lhes uma sede fixa e condigna, que não obrigasse a Associação a uma vida de nomadismo, para realizarem as suas reuniões e que iam sendo feitas, ora no Salão Nobre dos Paços do Concelho, ora na sala contígua do Cartório Notarial. Na fase final, as suas reuniões tinham lugar numa sala cedida pelos Bombeiros Voluntários de Figueiró dos Vinhos. À distancia, namoravam o “Casulo”, e para o qual ambicionavam transferir a sua sede, num “noivado” que já se iniciara, discretamente, pelo menos desde Abril desse ano. Simultaneamente, a Direcção desta Associação, tomava tambem conhecimento de um projecto elaborado pelo Gabinete de Apoio Técnico e que objectivava adaptar o “Casulo” a “Centro Cultural”. Desta forma, a Edilidade Figueiroense estava tambem apostada em não repetir o erro de 1937 e, conjuntamente com o Centro Cultural, traçava uma estratégia, que incluía contactos com o proprietário do “Casulo”, a fim de adquirirem o imóvel. O projecto de recuperação-adaptação para esse edificio, para além de coincidir com os desejos do Centro Cultural, estava tambem em coerência com a classificação que o Municipio conseguira para o “Casulo”, de Imóvel de Interesse Municipal, pelo Dec. 28/82 de 26 de Fevereiro. Ajudava tambem o facto, da primeira direcção do Centro Cultural, ser constituída por um grupo de pessoas com grande prestigio nos meios Figueiroenses, facto este que terá pesado na anuência do proprietário em vender a esta Associação o imóvel e, sobretudo, porque objectivava albergar uma Associação Cultural, num espaço plenamente contextualizado para esse fim. Assim, em 29 de Junho de 1984, e pela quantia de oito milhões de escudos, o “Casulo” deixava de ser propriedade privada e passava a ser sede de uma Associação de Utilidade Pública. Quase meio século depois, o “Casulo” passava por uma nova transacção. Porém, teria de aguardar a rescisão do contrato de arrendamento com a sua última inquilina, para poder cumprir em pleno a sua nova missão, dentro do seu espaço simbólico.
A mudança do Centro Cultural de Figueiró dos Vinhos da sua antiga sede, isto é, de uma sala cedida pelos Bombeiros Voluntários, para a “Casa Malhoa”, foi feita num enquadramento algo deprimente, e que nos é revelado pela transcrição da acta da reunião da Direcção, datada de 5 de Fevereiro de 1987: “Às actividades que acabamos de expôr (e que foram muitas), devem juntar-se as seguintes acções desenvolvidas no âmbito da instalação deste Centro na sua nova sede – A Casa Malhoa.(…)Tratamento e limpeza do jardim e horta anexos à casa, os quais nos foram entregues em condições altamente degradadas e cujos trabalhos foram dispendiosos e demorados. Pequenos arranjos na instalação eléctrica, sem carácter definitivo e com o objectivo de instalar as exposições atrás referidas. Limpeza das dependências interiores com o mesmo fim. Mobilamento da Sala de reuniões, já que a casa nos foi entregue sem qualquer mobiliário à excepção da mesa e cadeiras da sala de estar, a qual possui revestimento mural a pergamóide gravado com entablamento no tecto já desprovido de quadros a óleo, mas possuindo um candeeiro do principio do século. Mobilamento da Sala da Direcção(…)”.
Em 23 de Fevereiro de 1987, na sua sede do “Casulo”, tomava posse uma renovada Direcção do Centro Cultural, que viria a ampliar e a reforçar esta nova Primavera existencial do edificio. Era composta por uma equipa jovem, que profissionalmente trabalhava no Gabinete Técnico da Câmara Municipal de Figueiró dos Vinhos: Rui Manuel Almeida e Silva, Eduardo Kol de Carvalho (arquitecto que viera de Lisboa), José Manuel Fidalgo, Maria Adelaide Leitão e Manuela Santos Alves. Dotados com formação e sensibilização patrimonial, que iam adquirindo com os trabalhos de execução do Plano de Pormenor de Salvaguarda do Centro Histórico da Vila de Figueiró dos Vinhos, e ao qual aplicavam, inclusivamente, a filosofia das Cartas Patrimoniais Intenacionais, elegeram como prioridade a reabilitação completa e cirúrgica do “Casulo” de Malhoa. O edificio seria a base donde irradiaria um ambicioso programa cultural, e que o colocaria como ponto de encontro entre a população e a Arte, a História, o Património e a Etnografia do concelho, abrindo diáriamente as suas portas e promovendo múltiplas iniciativas. Os trabalhos de recuperação foram emblemáticos e exemplares, realizados com tecnologias e materiais tradicionais, aplicando técnicas “antigas” e repondo a sua anterior tipologia. Tudo foi recuperado, desde a cave ao sotão: paredes exteriores e interiores, telhado, portas e janelas, madeiramentos, estuques, frisos, pinturas e caiações, ferragens, lago e jardim, espaços interiores, etc. Só não se procedeu às reposições arquitectónicas originais. O “Casulo” renascia!
Na verdade, entre Fevereiro de 1987 e Junho de 1993, o “Casulo” voltou a erradiar vida, cor e luz: inúmeras exposições de temática diversificada, visitas culturais guiadas, edição de um boletim cultural “O Casulo” (com 13 edições), levantamento do património concelhio, instalação de uma biblioteca com cerca de mil volumes para consulta e estudo dos sócios, apresentação e feiras de livros, etc. Estabeleceram-se contactos com entidades nacionais e estrangeiras (Secretaria de Estado da Cultura, Fundação Gulbenkian, Instituto da Juventude, Região Turismo do Centro; Brasil, Itália e Japão), promoveram-se actividades lúdicas e recreativas, realizaram-se as Festas Populares (S.Martinho, Sto. António, S. João), construiu-se um coreto e anfiteatro nos terrenos adjacentes do “Casulo”, e que inclusivamente, chegou a ser visitado pelo então Primeiro Ministro, Anibal Cavaco Silva. Promoveram-se Programas diversos: Ocupação dos Tempos Livres; Apoio ao Associativismo e Apoio aos Trabalhadores Desempregados. Um grupo de Professores de Artes Plásticas, de Lisboa e do Porto, ofereceu um conjunto de vinte paineis e que vieram a colmatar o vazio existente na sala de visitas do “Casulo”. Aquela casa voltava a ser frequentada, novamente, por um espirito “inquieto”, sonhador e profícuo. No seu apogeu, o Centro Cultural contava com cerca de 300 sócios.casulo_de_malhoa_com_claraboia_do_atelier
O grupo que esteve na base deste sucesso associativo, e que tanto se repercutiu no “Casulo, entre Fevereiro de 1987 e Junho de 1993, decide passar o “testemunho” a um novo grupo de jovens cheios de entusiasmo e convicção. Estes, herdavam uma herança demasiado pesada mas cuja essência aceitaram prosseguir e sustentar. Assim, em 11 de Junho de 1993, é eleita uma nova Direcção do Centro Cultural, e que seria a última Direcção eleita daquela Associação, e a avaliar pelo Livro de Actas da Assembleia Geral.
Na primeira fase da sua gestão directiva, a Associação ainda conseguiu levar a efeito algumas iniciativas importantes, mantendo o brilho e o fulgor do “Casulo”. Todavia, não possuo elementos concretos e que me permitam avaliar, documentalmente, o desempenho desta última Direcção, mas tão somente uma Acta (cheia de entusiasmo) lavrada no Livro de Actas da Assembleia Geral, de 29 de Dezembro de 1993, e cuja leitura nada fazia prever ou adivinhar o que se passaria lá mais para a frente no tempo, e na vida do “Casulo”, e cuja história teria um final triste e desolador. Assim, passados alguns anos, e surpreendentemente, as portas do “Casulo” voltariam a fechar, reflexo de uma óbvia desmotivação por parte do grupo associativo, que se percutia na ausência de programa orientador e de acções concretas por parte do Centro Cultural. Gradualmente, ia tomando também forma o espectro visível de uma nova degradação fíisica do “Casulo”, levando a Direcção do Centro Cultural, a candidatar-se aos fundos do PIDDAC (Programa de Investimento e Despesas de Desenvolvimento da Administração Central) constituído por valores do Orçamento do Estado, na alçada do então Ministério do Planeamento, que possibilitaria intervir na recuperação física do edifício, e cuja candidatura o Centro Cultural apresentou em 1998, tendo sido aprovada pela Direcção Geral das Autarquias Locais. Entretanto, e mais recentemente, a Direcção Geral das Autarquias Locais solicitava à Associação a devolução do adiantamento que esta recebera, acrescidos dos respectivos juros de mora, por não ter havido (até essa data) prova da aplicação da verba. Desta forma, e dado que a verba não foi devolvida, o Estado, inevitavelmente, executou a penhora do “Casulo” e dos seus terrenos anexos, para pagamento da divida. Com a execução da penhora pelo Ministério das Finanças, em Maio último, a Câmara Municipal usou do direito preferencial, que lhe assistia para o resgate do imóvel, e “salva” o “Casulo” do risco que este incorria em se transformar, novamente, numa propriedade legitimadora de poderes pessoais. O resgate deste património custou aos cofres da Câmara 160 mil Euros.
Neste momento, encontra-se em curso um plano cultural denominado “Rota de Malhoa”, e que inclui os municipios de Figueiró dos Vinhos, Caldas da Rainha, Alpiarça (Casa dos Patudos) e Lisboa, que tem o seu ponto central e unificador nas potencialidades naturalistas da região e no seu património integrado. Focaliza-o e contextualiza-o as potencialidades culturais, disponibilizadas pelo espólio fisico, material e memorial de José Vital Branco Malhoa. Que sítios e locais lhe aguçaram a inspiração, que gentes, usos, costumes e tradições subsidiaram a sua alma criadora e que vestígios testemunhais ainda é possível detectar para melhor compreendermos a extensa obra que nos deixou.
O Município prepara-se, igualmente, para fundar um Museu de Arte Naturalista, que funcionará como “Escola”de divulgação das artes e que, principalmente, acolherá e despoletará paixões para as questões do património concelhio, que urge recuperar, inventariar, classificar, monografar, mostrar e divulgar, objectivando concentrar “ todo o património histórico que está disperso por vários pontos do concelho”, dando-o a conhecer a todos.
É necessário, devolver ao “Casulo”, e de uma vez por todas, a sua dignidade e o fim para o qual foi criado, tentando reencontrar nele o quotidiano do pintor, as tradições materiais, imateriais e memoriais da casa onde viveu, e onde tambem se tornou imortal.
O futuro Museu Municipal (e cujo ivestimento rondará os 900 mil Euros), será implantado nos terrenos da horta pertencentes ao “Casulo”, possibilitando uma dinâmica umbilical ao espaço memorial dessa casa. As essências do “Casulo” e do Museu Municipal alimentar-se-ão recíprocamente, num axioma mediático comum, articulado em redor dos mesmos valores fundamentais: manter, conservar e reabilitar constantemente o património, como actos de cidadania, em reconhecimento de uma memória colectiva, que diz respeito a todos, e longe de elitismos redutores.

A lição das Vicentinas de Figueiró dos Vinhos

30 Setembro 2008

vicentinas_foto1As Conferências Vicentinas são hoje consideradas de Solidariedade Social. Tiveram o seu início nos bairros pobres de Paris, França, em 1833, fruto da acção de meia dúzia de jovens, liderados por Frederico Ozanan, com apenas vinte anos de idade, e cuja dedicação à causa se inspirava na obra e na missão caritativa de S. Vicente de Paulo, isto é, sob o influxo da justiça e da caridade, objectivando aliviar os sofrimentos aos marginalizados, mediante o trabalho coordenado de seus membros. Devido ao seu grande sucesso as Conferências rapidamente difundiram-se por toda a Europa e em 1859 já estavam vastamente implantadas em Portugal. Este movimento tem a constante preocupação em se renovar constantemente, a fim de se adaptar à dinâmica da sociedade e do mundo.

O núcleo feminino de Figueiró dos Vinhos, foi instalado em 17 de Março de 1965, precisamente há 43 anos. Tiveram como Presidentes senhoras de elevado prestigio social, tais como, Maria Alice Faria Tambá, Margarida Borges Albuquerque Calheiros Ferreira, Maria Licínia Campos Costa de Abreu, Maria do Patrocínio Tadeu, Maria Albertina Barata Simões Arinto, Prof. Manuela Pereira, sendo presididas actualmente pela Professora Celeste Dias. Prestam auxílio domiciliário, na doença, a toxicodependentes, etc, tendo tido no ano de 2007, cerca de seis mil Euros em despesas, que se traduziram na ajuda a 320 pessoas carenciadas

Contudo, o presente artigo não tem como objectivo historiar o núcleo das Vicentinas de Figueiró dos Vinhos, embora fosse importante fazê-lo, mas sim para realçar o exemplo que esta Associação deu aos seus conterrâneos no dia 14 de Setembro último, presenteando-os com um espectáculo na Casa da Cultura, que encheu completamente, para ouvir o que as Senhoras da Conferência de S. Vicente Paulo tinham para nos mostrar e dizer. Confesso que fui levado pela curiosidade, para ver como “tudo aquilo ia sair”, mais a mais, num espectáculo elaborado por um grupo sem experiência de palco e que pela primeira vez se apresentava ao público, sujeitando-se ao seu julgamento artístico. Pois bem…saí de lá “de boca aberta” (como se diz na gíria popular) e tambem com a lição bem aprendida.

E quando falo em lição aprendida, não me refiro somente à maneira magistral como contaram a epopeia da sua Associação e do Santo que as patrocina. A lição que trouxe nesse dia, de dentro da Casa da Cultura, é mais profícua e profunda. Para além de mostrarem ambição artística, as Vicentinas foram um estimulo a novas formas de contar histórias, propondo ao público o acolhimento de valores imutáveis e fundamentais e que souberam transmitir de forma renovada, num acto de verdadeira cultura, e sem elitismos culturais, muitas vezes refreadores, e que afastam a comunidade dessa relação sadia, e que se quer assim, simples e pura. Mostraram tambem uma nova fórmula para encorajar a criatividade, uma vez que provaram, que todos podem e devem participar na construção de uma certa identidade cultural, aberta a todos, e que, neste caso, de forma original, deu expressão à vida quotidiana da sua comunidade associativa. Assim, venceram em cerca de 2 horas de representação, um grande desafio, que foi provar aos actores políticos e culturais do nosso Concelho, que são parceiras fundamentais no processo de intervenção local e comunitário. Bem organizadas, coesas, com pleno espírito de entreajuda, este grupo de senhoras foi capaz de pegar num espaço e numa ideia, e que entusiasticamente souberam dinamizar. Sem serem detentoras de fórmulas especiais ou supra naturais, as Vicentinas conseguiram o Teatro, a Música, a Cenografia, os slides e a imagética, numa fórmula em que se assumiram como artistas interventoras e criadoras, resultante da sua motivação, e em coerência com a filosofia que defendem na sua Associação. Estão todas de parabéns, tanto as Senhoras que estiveram em palco, como tambem aquelas que nos bastidores preparam o espectáculo do dia 14 de Setembro de 2008.

A segunda lição que aprendi, é que, na vida comunitária, o mais importante são as pessoas, por mais obras que se ergam em cimento, alcatrão e betão. Em Figueiró dos Vinhos, o potencial humano existe, em todos os escalões e faixas etárias, mas está “imerso”, por valores que muitas vezes esquecem a valência humana, individual e colectiva. Mais importante que as engenharias e as arquitecturas, importa tambem erigir ideias, mudar mentalidades, espevitar dinamismos que frutifiquem, soltar a massa critica (e criativa) da comunidade.

O espectáculo que ofereceram, teve tal aceitação e impacto, que o irão repetir, a pedido de muita gente, em 23 de Novembro próximo.

E é assim, que este Grupo de 29 Senhoras Vicentinas, mantém uma obra voluntariosa há quase meio século em Figueiró dos Vinhos, e isso, só por si, é mais que suficiente para merecerem uma sede, ou um espaço dignificador, não para elas, mas para aqueles a quem servem todos os dias, e que esteja à altura da missão que abraçaram: servir o próximo.

O «Casulo» – Capitulo II – Segunda vida (1933 – 1982)

15 Setembro 2008

Se a primeira “vida” do “Casulo” representou o idílio dourado deste edificio, já a sua segunda “vida” representaria o inicio de uma viúvez patrimonial, desgarrada do seu pulsar simbólico, e aproveitada apenas como imagem de postal ilustrado, numa vaidade turistico-cultural bacoca e desprovida de sentido.
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Em 10 de Setembro de 1933, um mês e meio antes de falecer, José Malhoa janta na Quinta de Cima, em Chão de Couce, na casa da familia do seu grande amigo Alberto Rego, no dia em que foi inaugurado o retábulo de “Nª Srª da Consolação”. Foi o seu último grande “serão”entre amigos. No dia seguinte, já no “Casulo”, escreve uma carta endereçada à “Exma Srª D. Elvira”, e que seria a sua última missiva cheia do seu mais fino humor, onde se reflecte a alma de que era feito, e que eu não resisto a transcrever:
“O último quarto de hora do jantar delicioso, que V.Excª e o Exmo Sr. Dr. Alberto Rego me ofereceram, foi um tormento para mim! Calcule V. Excª que, quando espetava com o garfo aquela deliciosa e loirinha pele de leitão, a mesma escapou-se como uma enguia de dentro do garfo e desapareceu no meu regaço! Muito à sucapa, começo a tactear com a mão no guardanapo, e…nada! Bem (disse para comigo) está no colete ou nas calças, e lá me fica estragado o meu mais novo arranjinho!…Continuo com as minhas investigações manuais, e…nada! E então gritei cá para dentro: ai Jesus! que a pele caiu no tapete, e é nódoa certa!!…Resolvi, depois de muito matutar, aproveitar quando, terminado o jantar,(…) baixar-me, apanhar a maldita pele, e colocá-la debaixo da cadeira de V. Excª, e assim era V. Excª quem pagava as favas. Mas qual!…De repente, levantam-se todos a gritarem-me «Olha as iluminações, venha para a janela da torre, que aí vem a música e a marcha!». Corri tambem, e lá ficou a pele e a nódoa a alastrar…a alastrar! Faço ideia que a criada hoje, ao fazer a limpeza, pôs as mãos na cabeça ao ver a nódoa terrível, e o menos que terá dito é «que grande porcalhão que é o tal “pinta mônos”»! Perdôe V. Exª ao desastrado muito grato, José Malhoa.”casulo_anos_60_jose_malhoa
O Mestre, em testamento, nomeara como herdeira do “Casulo” a sua afilhada, Julieta de Almeida Pinto e Abreu, filha do seu grande amigo, o Pintor Henrique Pinto. Contudo, Julieta morre inesperadamente uns meses antes do Pintor, em 11 de Fevereiro de 1933, causando-lhe um enorme e profundo desgosto. Embora tivesse tido tempo para o fazer, Malhoa não se preocupa em alterar o seu testamento e procura continuar a sua vida da melhor forma possivel e descontraídamente e tal como o prova a carta acima transcrita. Desta forma, opta por “deixar” à Sociedade Nacional de Belas Artes o remanescente do seu património. A Sociedade, após a morte de Malhoa, toma a posse legal do “Casulo” e decide vendê-lo em hasta pública, facto que veio a consumar-se em Março de 1937.
Joaquim Alves Tomás Morgado, advogado jovem e ambicioso, residente na vila de Figueiró dos Vinhos, adquire o imóvel com o fim de o habitar mas tambem pelo prestigio que a posse do edifício lhe conferia localmente. A partir desta data o edificio viria a sofrer, gradualmente, algumas alterações na sua estrutura arquitectónica original. Afinal, havia que adaptá-lo à sua nova função de simples casa de habitação e para isso, foram-lhe infligidas intervenções que lhe alteraram a sua fisionomia memorial.O espaço do Pintor sofria a primeira desmistificação e tornava-se em pouco tempo num lugar de ficção patrimonial. A memória era arredada para a sombra, dominada por um novo estatuto dominial.
A grande clarabóia de vidro do atelier foi desmontada, assim como um telhado de duas águas que encaixava no lado nascente do mesmo. As portadas altas e magestosas de ambos os lados dessa sala, foram substituídas por janelas mais pequenas, desarticuladas do conjunto, numa imitação pouco feliz, a fim de dar corpo a uma sala de jantar. A varanda alpendrada em madeira e ferro forjado, foi desmontada e substituída por uma varanda com uma grossa laje de betão e pilares grosseiros do mesmo material. No piso superior, no lado norte, um cunhal apainelado foi totalmente substituído por alvenaria. No Rés-do-Chão, igualmente a norte, a varanda que era aberta e que se prolongava desde a varanda nascente da sala de visitas, foi transformada numa “marquise” fechada e que viria a servir, inclusivamente, durante muitos anos como escola primária privada, ministrada pela última inquilina do “Casulo”.
Em 1944, o proprietário do “Casulo”decide arrendá-lo. O edificio conheceu alguns inquilinos, tendo como última locatária uma ilustre Professora Primária, a D.ª Isabel Semedo e que o habitou durante muitos anos.
Assim e durante quase meio século, a memória histórica daquela casa permaneceu enclausurada e assumiu funções, que o fizeram cair num sono profundo, num estatuto de domínio senhorial e que lhe provocou um coma patrimonial. Só os mais ilustres, familiares, conhecidos e amigos dos locatários, continuarão a usufruir do privilégio de pasmarem perante a exuberância da sala de visitas do Pintor e do espaço que este habitara e que era mostrado, reverenciado e apreciado em privado, como se de um museu particular se tratasse.
Pergunto: porque não acautelou José Malhoa o futuro do seu “Casulo” em favor da edilidade Figueiroense, destinando-o, por exemplo, para uma futura casa-museu, num gesto largo de gratidão pela dádiva que colheu no seu “Figueiró-das-Côres”, que tanto percutiu e potenciou a sua glória como pintor exímio e que lhe garantiu um lugar na história das artes nacionais???
Penso que a resposta a essa questão se deve a cinco motivos:
1- Malhoa nunca deixara de ser um homem simples, apesar dos muitos prémios e homenagens que recebeu, sobretudo na última década da sua vida. A convivência campestre ampliara, de alguma forma, a natureza dessa essência.
É certo que acautelara a sua propriedade de Figueiró, testamentando-a em favor da sua afilhada mas esta, inesperadamente, morre antes dele. Todavia, nunca se preocupou nos meses seguintes em alterar o seu testamento, nomeando outro herdeiro. E isto é um facto!
2- Em 1933, ano da sua morte, o mito nacional de José Malhoa já estava plenamente instituído e para o qual muito contribuiu a reaproximação que o Pintor iniciara à sua terra natal (Caldas da Rainha) a partir de 1926, pela mão de um Caldense dinâmico: António Montês. Este, lançara a ideia de fundar um museu de arte nas Caldas da Rainha com o nome do Artista, reunindo uma comissão denominada “Liga dos amigos do Museu José Malhoa”. Entusiasmado com a ideia museológica, o Pintor faz em 1932 uma importante e valiosa doação de obras de arte, que incluía artistas como Joaquim Prieto, Columbano, Lourdes de Mello Castro e também obras suas, que viriam a ser as primeiras da colecção do seu Museu, o qual obteria o parecer favorável do Conselho Superior de Belas Artes. Deste modo, em 9 de Maio de 1933, é criado, embora em instalações provisórias, o Museu de José Malhoa nas Caldas da Rainha. O pintor vê assim consagrada, ainda em vida e definitivamente, a sua obra, ao mesmo tempo que via tambem assegurada a futura vitalidade da sua memória. Seria nas Caldas da Rainha e não em Figueiró dos Vinhos, que se centraria e integraria a materialidade do seu esplendor artístico e cujas bases sólidas eram sancionadas e apoiadas pelo Estado Português. A sua terra natal entendera o seu valor patrimonial e memorial, bem como a fortuna que tal representava para as gerações futuras.
Figueiró dos Vinhos não passava de um terra de grupos e familias rivais, demasiado “pequena”, como uma terriola onde se colecionavam favores e “dotes”, de caciquismos sistemáticos e de lealdades forçadas por nomes poderosos e abastados, com a politica à mistura e que, consequentemente, condicionava o futuro e a maturidade da vila e do concelho (basta ler os jornais da época). Pergunto-me, se Malhoa não sentiria tudo isto (“Trato de me afastar quanto posso da sociedade porque a conheço a fundo”) e se porventura teria fé em acções inovadoras e progressistas por parte dos figueiroenses que ele representava nas telas!? Acho que permaneceu e viveu aqui, tão-somente, pelo vício inspirador que a ambiência rural e paisagistica lhe facultavam, permitindo-lhe um extenso campo fértil de temas e que transferira para as suas obras mais consagradas. Nunca os Figueiroense teriam capacidade para se unir e constituir em comissão, numa iniciativa idêntica à das gentes Caldenses. Além disso, também não lhe interessava fragmentar a sua memória futura em dois pólos rivais e concorrenciais. Mais a mais, a figura de “Casa-Museu” ainda não estava consagrada na época, bem como a questão dos valores patrimoniais, que não tinham a importância tal como hoje os conhecemos.
3 – Todos os seus entes queridos tinham já falecido. O essencial da sua herança estava assegurado solidamente, tanto nas Caldas da Rainha como em Lisboa. Preocupar-se com o destino do “Casulo” era uma questão secundária e que exigia o dispêndio de energias que já não tinha. Alem disso, não deveria querer que o edifício afastasse os amigos de longa data, por temer a concorrência entre eles, em despeito da doação do mesmo.
4- O Programa Cultural do Estado Novo nunca aprovaria outro pólo museológico dedicado a Malhoa, tendo em consideração a robustez do Museu das Caldas, esse sim, devidamente institucionalizado e sufragado tanto pelo Regime, como pelo próprio Artista. Figueiró dos Vinhos tinha um cunho demasiado provinciano e saloio, que nunca entendeu a essência da filosofia patrimonial, por mais homens importantes, que localmente e eventualmente a pudessem sustentar. Para mais, a vila estava longe de ter as acessibilidades desejadas aos grandes centros urbanos do país.
5- Finalmente referir que para o Estado Novo o património consagrado era o “artístico e o arqueológico”. Dava-se sobretudo valor à instituição museológica e que se dividia em três grupos basilares: museus nacionais, museus regionais e museus municipais mas que oferecessem “tesouros de arte sacra e outras mais colecções (que) oferecessem valor artístico, histórico e arqueológico”( Capitulo V do Decreto de 1932).
O “Casulo” de José Malhoa estava, deste modo, alguns degraus abaixo desta hirarquia de valores e nunca obteria o estatuto de prioridade patrimonial a preservar e, sobretudo, porque não existia oficialmente como imóvel de interesse público sustentado e classificado. Conclusão: a Sociedade Nacional de Belas Artes, não teve outra alternativa senão desfazer-se de um peso que não podia manter e cuja rentabilização patrimonial era complicada, decidindo vendê-lo em praça pública. O Estado, inconscientemente, vandalizava oficialmente. Contudo e paradoxalmente, vejo-me obrigado a reconhecer, que Joaquim Alves Tomás Morgado, ao adquirir o “Casulo” em 1937, evitara que o edificio fosse adquirido por alguem de fora do concelho, ou por algum grupo que o tivesse transformado, irremediávelmente, em qualquer coisa bizarra ou, pior ainda, …por alguem que o tivesse demolido ou transfigurado profundamente. De referir, que a única voz que se ouviu apelando “à Nação” que adquirisse o “Casulo”, para fins públicos, foi a do Dr. Fernando de Lacerda, num discurso que proferiu na sede da Casa da Comarca de Figueiró dos Vinhos, em 06 de Abril de 1955 “para lá instalar uma pousada para estudantes de Belas-Artes”. Contudo, tal apelo não frutificou!
dona_julieta_pinto_abreu_por_jose_malhoaO “Casulo”continuaria à espera, pacientemente, pela hora em que emergiria da sua longa letargia. E será em 1982 que sentirá um laivo de esperança, quando pressente a coragem, a ousadia e a criatividade de um grupo de Figueiroenses, que em Fevereiro desse ano tem a iniciativa de fundar um Centro Cultural em Figueiró dos Vinhos. Uma Associação ousada tomava corpo e começaria a namorar o “Casulo”, ansiando instalar nele a sua sede. Nesse mesmo ano, a Câmara Municipal conseguia tambem a sua classificação como Imóvel de Interesse Municipal, pelo Dec.Lei 28/82.
Parecia assim, que o ano de 1982 prometia iniciar uma nova vida ao chalet de Malhoa, tirando-o do “esconderijo” onde este permanecera quase cinquenta anos, devolvendo-lhe a sua identidade genuína, que ansiava por escrever uma nova página no livro das suas memórias, há muito interrompidas e adormecidas.
No próximo número deste jornal contarei a 3ª “vida” do “Casulo”, que decorre entre 1982 e a actualidade.

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